PARTE UM
Faz alguns dias visitei duas exposições no MASP: “Francis Bacon: a beleza da carne”, com curadoria de Laura Consedey, e “Mário de Andrade. Duas vidas”, que tem como curadora Regina Teixeira de Barros.
Enquanto visitava a mostra de Bacon – a primeira e a mais completa exposição de pinturas do artista inglês em São Paulo¹, de repente me deparei com o seguinte depoimento do pintor:
Eu gosto dos homens
Gosto de seus corpos,
Gosto de seus cérebros,
Gosto da qualidade de sua carne²
Não sei se pelo fato de estudá-lo há tempos, ou porque pretendia, na sequência, visitar a mostra dedicada a ele no subsolo do Museu³ – o fato é que a aquela declaração de Bacon me lembrou de um texto que Mário de Andrade publicou em 1940, a respeito da obra de Candido Portinari, comparando-a com a do mexicano Diego Rivera:
(…) Portinari se fez realista (…). Uma espécie de realismo moral, franco, forte, sadio, de um otimismo dominador. Nisto ele se separa radicalmente da obra amarga e rancorosa de um Rivera (…). Portinari, sob o signo dos Antigos em que se colocou, ao mesmo tempo que pode conservar uma calma, um equilíbrio, uma temática que nada têm de literários, e são exclusivamente plásticos, soube dar uma esperança ao mundo (…)⁴
A partir dessas considerações sobre o realismo de Portinari, Mário explicita o fundo de sua tremenda admiração por Portinari:
(…) o seu realismo, si é otimista, não é sonharento. É um realismo apenas muito sadio e dinâmico. Eu gosto dessas mulheres suaves e fortes, brasileiras, brasileiríssimas de tipo, boas como minha mãe. Não tenho o menor medo de gostar. Eu gosto desses machos rudes de trabalho, olhe-se a mão em afresco. Isso é mão dura mas nobre, mão beijável (…)⁵
O que me chamou a atenção nesse trecho foi que Mário, se referindo às figuras femininas como “suaves e fortes”, “boas como minha mãe”, não as tratava como “fêmeas”, aproximando-as das outras figuras: os “machos rudes”, cujas mãos tinha vontade de beijar.
Lembrar-me desse texto de Mário na exposição dedicada a Bacon, mostrou-me o que poderia estar por trás da interpretação de Mário de Andrade sobre as figuras de Portinari.
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Exposição impecável, aquela dedicada a Bacon: escolha bem-sucedida das obras (grande parte proveniente de instituições internacionais de ponta); disposição correta das pinturas no espaço (sem firulas de uma certa expografia enervante que anda por aí); iluminação equilibrada. O único dado que me incomodou foi a insistência das etiquetas de identificação das obras em não deixar esquecer a orientação queer do artista.
Museu que se pretende “diverso, inclusivo e plural”, a exposição “Francis Bacon: a beleza da carne” integra a programação do MASP que, este ano, é dedicada às “História da diversidade LGBTQIA+”; assim, é compreensível que todos os artistas e as artistas que se apresentarem nas exposições no museu em 2024 serão vistos sob esse viés⁶. Mas Bacon sempre me pareceu maior do que qualquer rotulação, e as obras presentes na mostra, só comprovavam essa minha impressão.
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Giulio Carlo Argan, historiador e crítico italiano, quando escreveu sobre o expressionismo abstrato norte-americano, em seu hoje clássico Arte Moderna, comentou que a diferença entre a produção norte-americana do imediato pós-guerra e a europeia do mesmo período, seria o fato de que a primeira possuía:
vitalidade intensa e tenaz do germe que se gera espontaneamente numa água pútrida, estagnada; e a água pútrida é o passado que, não se organizando racionalmente em perspectiva histórica, cai no caos do inconsciente. O passado que não se converte em história e pesa como um complexo de culpa é a contrapartida oculta do modernismo ativista da extrovertida sociedade americana, a nódoa sombria em seu otimismo.⁷
Alguém poderá estranhar trazer para esta reflexão um autor aparentemente tão datado como Argan que, morto em 1992⁸, teve o original italiano do seu livro – L´arte moderna Dall´Illuminismo ai movimenti contemporanei – publicado no longínquo 1970. Esse mesmo alguém poderia também argumentar que, hoje em dia, a figura do crítico parece a própria definição de um intelectual a se desconfiar: sujeito branco, europeu e, ao que parece, hétero. E, ainda por cima, um intelectual com forte apego humanista e universalista (e seu universo limitava-se, é claro, à Europa e aos Estados Unidos).
Mas, mesmo assim, as ideias de Argan – como as de Mário de Andrade –, também me vieram à mente enquanto visitava a exposição dedicada a Bacon. E isso por quê? Porque ali havia um descompasso entre as legendas e a realidade concreta das obras ao lado. Enquanto as primeiras faziam de tudo para direcionar a interpretação das pinturas, de forma unilateral, apenas a uma sensibilidade queer, as obras pareciam negar tal confinamento. Elas, em sua concretude e crueza refletiam plasticamente, sobre a miséria da condição humana.
Bacon, que engendrou sua carreira na segunda metade dos anos 1940, parece ter constituído grande parte de sua obra no meio do trauma da Segunda Grande Guerra e seus desdobramentos. É certo, portanto, que sua produção não se constituía explicitando apenas sua sexualidade, mas também sua consciência – e desespero – de viver uma situação de implacável finitude, sem um devir transformador. A meu ver, grande parte das suas pinturas trata dessa miséria.
***
Lembrei-me de Argan porque, quando se referiu à obra de Jackson Pollock, ele falava de uma “poética da incomunicabilidade” para caracterizar a obra daquele artista e a de seus colegas. Para o crítico, essa produção deixava de dar sentido ao mundo (função que a arte teria sempre exercido), para deixar que o mundo lhe desse significado. Pollock e seus colegas faziam tábula rasa da história e da arte do passado, ignorando-as.
Foi visitando a mostra de Bacon que entendi que ele – artista britânico vivendo num continente que tentava se reconstruir – sentiu-se compelido, ou obrigado, a dar conta daquele mesmo passado que, segundo Argan, teria sido abandonado por seus colegas norte-americanos. Se Pollock e os artistas do seu entorno buscavam acabar ou não levar em consideração o passado e o passado da arte, Bacon lutou contra eles. Buscou exterminá-los enquanto possibilidades de ainda significarem algo naquele mundo pós-utópico, surgido depois da Segunda Grande Guerra.
Parece ter sido pelo seguinte motivo que Bacon reviu a tradição da pintura europeia: para destruir o espaço pictórico renascentista e suas convenções, espaço esse também presente na fotografia, por ele tão utilizada. Foi por esta razão que o pintor desconstruiu a visualidade de artistas fundamentais para a arte da Europa, como Velásquez, Picasso, El Greco e outros. É o próprio Argan que, ao examinar a operação de Bacon sobre a história (a partir da história da arte) afirma:
Evidencia-se, a partir de toda a sua obra, que ele [Bacon] não acredita na eleição ou na salvação, mas na degradação e na queda da humanidade; portanto, mesmo a pintura não é um processo eletivo, e sim degradante. Como tal, é desmistificação, desvendamento brutal da verdade sob a simulação. Bacon se afasta deliberadamente das linhas de pesquisa da arte moderna, liga-se aos ápices da pintura do passado, Velázquez ou El Greco. Não os adota como modelos, mas como objetos de crítica; quer demonstrar que, tivessem esses artistas levado seus discursos pictóricos ao fundo, teriam chegado a conclusões muito diferentes.⁹
Mais adiante comenta:
O que (e não importa se conscientemente ou não) quer demonstrar Bacon? Que basta aplicar à realidade (a realidade de Velázquez) o misticismo da sublimação e do êxtase, e logo a realidade, em vez de se “espiritualizar”, corrompe-se, apodrece, torna-se asquerosa e repugnante […] Portanto, é absurdo falar em “nova figuração” para a deliberada desfiguração de Bacon, a qual invoca a figura apenas para depreciá-la, aviltá-la, desfazê-la sob os olhos espantados do espectador.¹⁰
É por essa compreensão da obra de Bacon que acabei por entendê-lo como aquele artista que, na Inglaterra, se contrapôs à obra de Pollock e seus colegas, nos Estados Unidos. Se esses últimos desprezaram e tentaram ignorar a história, a tradição e toda a racionalidade ocidental, Bacon as desconstruiu e as reapresentou ao mundo como ruínas.
…
A impressão de que a etiqueta “artista queer” parecia, talvez, estreita demais para Bacon, de alguma forma foi confirmada com a leitura do (excelente) catálogo da mostra. Ali, o texto da especialista Rina Arya, intitulado “Quando a obra se torna queer: ambiguidade em Bacon”¹¹ me pareceu seguir ao encontro das questões que levantei acima. Logo de início, ela propõe que, para refletir sobre a obra do pintor, seria importante uma reelaboração do termo queer:
Outra postura queer de sua obra, proposta neste ensaio, emprega um quadro conceitual mais amplo para o termo “queer”, afirmando que, em sua obra, esse elemento vai além de uma discussão sobre gênero e sexualidade. Assim, esta leitura marca um afastamento da compreensão de “queer” como uma postura diante das relações entre pessoas do mesmo sexo na vida e na obra de Bacon – incluindo as atitudes sociais pejorativas daquele momento – em direção a uma reapropriação do termo, como uma teoria que problematiza categorias heteronormativas e defende uma fluidez de pensamento quanto à maneira de ser.¹²
(Parabéns ao MASP por incluir no catálogo da mostra, um texto que questiona ou problematiza o conceito que a guia, ampliando seu escopo original).
A autora atenta para o seguinte: em 2016, com a publicação do segundo catálogo raisonné do artista, surgiu uma série de obras contendo figuras andróginas e femininas. Este dado permitiu a Arya escrever:
A descoberta dessas pinturas que incluem figuras de identidade de gênero mais ambígua, bem como o grande número de obras que incluem nus femininos (…) excedendo os acasalamentos masculinos, desvia o foco exclusivo em Bacon como um pintor de nus masculinos. Seu olhar homoerótico e sua abordagem sadomasoquista, tanto na técnica quanto no conteúdo, são certamente uma vertente central de suas obras. Dito isso, essa leitura do queer em seu trabalho não é suficientemente extensa. Em Bacon, o queer vai além da problematização da identidade de gênero e propõe o desmantelamento da certeza ontológica.
O que podemos dizer com algum grau de certeza é que Bacon articula a condição humana na pintura, o que para ele significava a representação da força vital da carne, que não poderia ser preservada nem contida e que ameaçava desestabilizar qualquer tentativa de fazê-lo.¹³
Arya, mesmo reafirmando que o queer condiciona muito da produção de Bacon, atesta que suas figuras furtivas, solitárias e anônimas são como símbolos “do drama existencial humano”. E complementa:
Uma leitura contemporânea do queer baseia-se nessa leitura existencial, desmantelando categorias que antes demarcavam identidades socioculturais, inclusive o gênero, e, ainda mais fundamentalmente, aquilo que constitui a natureza humana. A questão ontológica do animal como parte do humano é mais fundamental para o significado do ser do que as concepções de gênero ou sexualidade. E isso permite a fluidez das posições identitárias e a complexa experiência do ser que é precisamente no zeitgeist atual. É por isso que Bacon perdura, ao contrário de tantos outros pintores do seu tempo: porque antecipa preocupações persistentes¹⁴
Como o leitor e a leitora podem imaginar, quando desci ao subsolo do museu para visitar a mostra “Mário de Andrade. Duas vidas”, com curadoria de Regina Teixeira de Barros, eu ainda não havia lido o texto de Rina Arya. Portanto, ainda estava na minha cabeça a sensação do quanto o conceito de queer me parecia estreito para definir toda a obra de Francis Bacon. Foi com essa ideia que desci para visitar a mostra da coleção que pertenceu a Mário de Andrade.
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¹ Em 2014 o Paço das Artes, então no campus da USP, apresentou exposição de desenhos do artista.
² Entrevista concedida a Melvyn Bragg em The South Bank Show, transmitido pela emissora britânica ITV, em junho de 1985; Apud: COSENDEY, Laura. “Francis Bacon: a beleza da carne”, In PEDROSA, Adriano/COSENDEY, Laura (coord. Ed.) Francis Bacon: a beleza da carne. São Paulo: Museu de Arte de São Paulo, 2024, p. 20.
³ “Mário de Andrade. Duas vidas”, sobre a qual falarei na sequência.
⁴ ANDRADE, Mário de. “Portinari”. IN Revista Acadêmica. Rio de Janeiro, n. 48 Fev1940. Apud CHIARELLI, Tadeu. Pintura não é só beleza. A crítica de arte de Mário de Andrade. Florianópolis: Letras Contemporâneas – Oficina Editorial Ltda. 2007, p.132.
⁵ Idem.
⁶ A mostra fica em cartaz no museu até o dia 28 de julho deste ano.
⁷ ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.p.527. Em tempo, quando o crítico se refere à arte norte-americana do pós-Guerra parece ter como modelo maior daquele fenômeno, sobretudo a pintura de Jackson Pollock.
⁸ Ano da publicação de seu livro no Brasil.
⁹ Idem, p. 488/489.
¹⁰ Idem, p. 489.
¹¹ ARYA, Rina. “Quando a obra se torna queer: ambuiguidade em Bacon”, In PEDROSA, Adriano/COSENDEY, Laura (coord. Ed.) Francis Bacon: a beleza da carne. São Paulo op. cit. p. 40 e segs. O catálogo traz outros textos igualmente de interesse para a compreensão da obra de Francis Bacon. Aqui me deterei apenas ao ensaio de Rina Arya.
¹² Idem, p. 41.
¹³ Idem, p.56.
¹⁴ Idem, p. 66.