Foto: EBC

A greve de 28 de abril, contra as reformas ora em curso no Brasil, envolveu boa parte da população em diversos estados do Brasil, com participação popular semelhante à que verificamos nas manifestações que culminaram no afastamento de Dilma Rousseff. Se isso foi necessário para o afastamento de uma, porque não seria para o afastamento de outro? Escândalos de corrupção envolvendo ministros de Temer, impopularidade no mesmo patamar, idêntica insatisfação social com os rumos do País e como gerente geral os resultados econômicos são de mesmo quilate. Ademais se poderia dizer que uma foi eleita, o outro não. Contra isso uma mente mais imparcial diria: “é, mas ela foi uma condição crônica e dolorosa, ao passo que ele ainda é um golpe agudo e pungente”. No frigir dos ovos, empate.

Aqui levanta-se um sentimento perigoso para ambos os lados: injustiça. Por que pessoas em situação semelhante, examinadas sob mesmos critérios são tratadas de forma distinta? Uma é julgada e afastada, outro faz suas propostas avançarem no congresso. Ambos dependem dos mesmos parlamentares. Mas parece que pau que bate em Pedro não bate em João, ou, como diria Maria Rita Kehl, dois pesos duas medidas.

Não deveríamos estar todos juntos, apoiando em movimento dialético o reinício radical, em uma dupla negação determinada, de Fora Dilma-Temer? Eleições gerais, constituinte ou o que valha. Em vez disso vemos o sentimento de injustiça se capilarizar em tensão social e ressentimento cada vez mais microscópico.

É isso que acontece quando as razões são suspensas e o lado que ganha imputa ao que perdeu mera irracionalidade e desrazão. Repete-se aqui um déficit histórico mais profundo, que consiste na incapacidade renitente de reconhecer alguma razão aos perdedores. Nesta situação perder não é uma oportunidade para melhorar, renovar-se ou fazer a crítica, mas apenas humilhação. Ao perdedor o silêncio. Do outro lado, ganhar é nada mais do que confirmar que o poder é propriedade de alguém e não um efeito do revezamento necessário para que a justiça aconteça como experiência coletiva, mutuamente partilhada. Ao vencedor as batatas.

Este processo evoluiu com a entrada em cena de um personagem até então relativamente opaco: as escolas particulares. Os professores de 227 escolas paulistas, encarregados de cuidar dos futuros mandantes do país, peça fundamental deste pomo da discórdia chamado classe média, em uma atitude sem precedentes, aderiram a greve. Isso foi percebido como violação de contrato, como se nossas crianças estivessem ameaçadas pelo demônio da política.

A “criança” é uma figura fundamental da fantasia de Brasil. Em nome dela tudo se justifica. Sua pureza e inocência representam o futuro que nunca chega. A promessa em forma de berço esplêndido, conforme esta passagem inesquecível de Memórias Póstumas de Braz Cubas:

“Fustigava-o [o escravo Prudêncio], dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia – algumas vezes gemendo – mas obedecia sem dizer palavra, ou quando muito um ´ái nhônhô´ – ao que eu retorquia – ´Cala a boca, besta!´ – Esconder os chapéus das visitas, deitar rabos de papel a pessoas graves, puxar o rabicho das cabeleiras, dar beliscões nos braços das matronas, e outras muitas façanhas deste jaez, eram mostras de um gênio indócil, mas devo crer que eram também  expressões de um espírito robusto, porque meu pai tinha-me em grande admiração; e se às vezes me repreendia, à vista da gente, fazia-o por simples formalidade: em particular dava-me beijos.”[1]

Se os condomínios brasileiros da década de 1970 foram um empreendimento de “profissionalização” dos empregados domésticos, que deixavam de fazer parte da família, e passavam a usar uniforme e entrar pela porta de serviço, agora temos uma nova onda de “profissionalização domesticadora” que toca as escolas, cujo primeiro sintoma foi a Escola sem Partido e o segundo capítulo foi a barbárie com a qual a greve do professorado foi tratada. Escolas escalando estagiários para cobrir a função dos professores grevistas, pais indignados pela politização da educação, diretores de escolas gabando-se do controle que exerciam sobre seu professorado, gente descobrindo abismada que seus filhos estavam em uma “escola de esquerda”. Escolas trabalhando como depósitos de crianças apenas para “inglês ver”. Estabelecimentos interpelados pelos próprios alunos, ainda que não todos, sobre porque permitiam que seus funcionários interrompessem o trabalho pedagógico (como se a oposição fosse a qualquer projeto de reforma previdenciária e não a este projeto específico). Pais vociferando que estavam pagando pelo serviço e exigindo que os diretores sacassem a chibata … contra o escravo Prudêncio.

É parte elementar da formação política entender que o tratamento de qualquer conflito começa por reconhecer que o ponto de vista do outro possui dignidade e relevância, ainda que não concordemos com ele. A atitude daquele que quando contrariado quer levar a bola para casa é a atitude anti-política por excelência. A presunção de que a diversidade de opiniões é apenas um problema de má compreensão ou falta de caráter perpetua o complexo de Brás Cubas. Para ele os professores são extensões dos pais, que eles contratam para repetir seus próprios preconceitos. Nenhuma separação entre a vida privada das famílias e a experiência pública da escola. Serão os mesmos pais que depois reclamarão do apossamento corrupto do Estado pelos interesses privados. Os mesmos que regam as festas juvenis a álcool e orgulham-se de seu amor feito de exceções à lei. O menino é pai do homem.

Mas tanto os pais consumidores quanto os diretores acuados também têm suas razões e representam um ponto de vista interessante, preocupados que estão em entender como é possível que a educação se misture com a política, e o conhecimento com a ideologia. Querem, com bons motivos, proteger seus filhos da doutrinação, das más influências e do descaminho, que, como bem sabem, começam em casa. Querem um Brasil que volte ao trabalho, purifique-se do excesso de política, e pare de discutir as regras do jogo. Não estão contentes com Temer, como já não estavam com Dilma. Contudo, quando dois brigam é muito difícil admitir que se um estava errado o outro, ainda assim, pode não estar certo.

O que nos falta é um pouco mais de humildade para dar o terceiro passo. O passo que suspende nossa certeza sobre a justiça, tornando-a um horizonte comum de busca não apenas instrumento de opressão sobre outro ou de exercício de poder. O passo que nos leva ao terreno pantanoso no qual o direito não se identifica mais com a justiça. Para tanto devíamos lembrar do apólogo proposto pelo pensador liberal Amarthya Sen[2]:

Três crianças estão brigando para saber com quem deve ficar uma flauta. Parece óbvio que a flauta deve ir para a primeira criança, pois ela é a única que sabe tocar flauta. O argumento parece imbatível para quem se encerra em seu próprio ponto de vista, afinal do que serviria um flauta para quem não sabe como usá-la? Seria um desperdício e ademais ouvindo o som do instrumento, as duas outras crianças poderiam compartilhar este bem simbólico que é a música. O instrumento pertence a quem sabe usá-lo, e justamente por isso pode fazer a música algo que pertence a todos. Nada mais harmônico.

Se não ouvíssemos a segunda criança provavelmente concluiríamos assim.  Contudo, a justiça muda de figura quando ficamos sabendo que a segunda criança é muito pobre e não tem nenhum brinquedo. O valor que este objeto teria para ela seria muito superior ao dado pela primeira, que, agora, olhando melhor, tem muitas outras coisas com as quais brincar. Assim dando a flauta para a mais pobre isso poderia produzir um efeito transformador que é fazer esta segunda criança, que não sabe tocar flauta, aprender a tocar o instrumento.  Ficamos assim constrangidos com nossa própria estreiteza de pensamento, que nos levou a empregar um conceito de justiça tão pobre que se limita ao exame da situação presente, sem levar em conta que nossas decisões hoje podem transformar o futuro. Dar a chance para que a segunda criança seja capaz de aprender a tocar o instrumento, depois disso ela poderá ensinar tantas outras pessoas a arte da flauta. Assim o saber musical torna-se socialmente compartilhado.

As duas posições poderiam brigar indefinidamente. Ambas são justas, imparciais e não arbitrárias. Ambas seguem seus próprios termos e em acordo com suas próprias posições. Não bastasse isso a terceira menina levanta um detalhe esquecido até então. Foi ela quem fez a flauta, com suas próprias mãos, durante meses a fio, e, ao final, teve o fruto de seu trabalho tomado pelas outras. Ou seja, sedentos pela tensão entre o presente e o futuro esquecemos que os processos possuem também um passado e uma história, e esta também é fonte de justiça. Olhando desta perspectiva parece óbvio e indiscutível que quem fez a flauta é o dono dela. O resto é roubo.

O terceiro passo nos tira da lógica dualista na qual o acerto de um é o erro do outro. Mas ele nos leva a um problema maior que é perguntar: qual justiça para qual direito?

Poderíamos dizer que os igualitaristas econômicos tendem a ficar com a segunda menina, o fato de que ela é pobre determina a justiça a ser feita. Os libertários e pragmáticos ficariam com a terceira menina. Já os hedonistas e pragmáticos vão aderir à justiça de quem pode melhor usufruir dela. As coisas se complicam quando pensamos que a direita libertária e a esquerda marxista poderiam formar uma aliança em torno da tese de que a justiça emana da propriedade e do trabalho, ou seja, da terceira flautista.

É neste ponto que costumamos apelar para a suspensão das razões e recorrer a uma espécie de autoridade superior. Ocorre que no Supremo Tribunal Federal das Flautas Litigantes encontramos dois ministros que sabem tocar flauta, outros dois que são pobres e os dois últimos são egressos das fábricas de construção de flautas. Ou seja, não adianta fetichizar os tribunais e minorizar nossa razão e a dos outros, pois a situação não se resolverá por si só.

Ora, as escolas, sejam elas liberais, marxistas, pragmáticas ou hedonistas são o lugar no qual o debate das flautas deve ocorrer. Esperamos que elas formem nossas crianças na disciplina da diversidade que as habilitará ao tratamento do conflito. Caso contrário estaremos lhes prometendo um mundo com fornecimento vitalício de flautas, como fazia o pai de Brás Cubas.

[1] Assis, Machado (1881) Memórias Póstumas de Braz Cubas. São Paulo: Ateliê, pág. 87-88.

[2] Sen, Amarthya (2009) A Ideia de Justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.


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