No centro da foto, Albertina Bertha está acompanhada de outras fortes autoras brasileiras: a sua direita, Gilka Machado, primeira poeta erótica do País, que teve sua obra reeditada neste ano; no lado oposto, a poeta Laura da Fonseca e Silva, que desafiou a sociedade ao contestar o casamento e a maternidade como desígnios femininos. Foto: Revista Careta/ Acervo Biblioteca Nacional

Representativas no que diz respeito ao papel da mulher na sociedade, na política ou na literatura, algumas autoras brasileiras de grande talento, do século XIX e XX, ficaram no limbo, esquecidas. A maioria delas nem sequer teve o devido reconhecimento em vida, destino ao qual muitos escritores medíocres – homens – escaparam com folga.  Hoje há diversos trabalhos de amorosa garimpagem para redescobrir essas romancistas, contistas e poetas. Importantes figuras femininas da literatura brasileira, elas têm ganhado reedições de suas obras nos últimos três anos.

É um trabalho de pesquisa que envolve paixão e determinação. Foi assim que o jornalista e escritor Ramon Nunes Mello resolveu colocar Adalgisa Nery (1905-1980) de volta em circulação depois de décadas deixada de lado. Mulher expressiva no jornalismo político do Estado Novo e da ditadura militar, a carioca escreveu em verso e em prosa. “A biografia de Adalgisa é tão forte que se sobrepõe à obra”, pontua o organizador.

Casada com o pintor Ismael Nery e, depois, com o jornalista Lourival Fontes, sua história é repleta de situações aflitivas. “A obra poética da Adalgisa é quase um canto de angústia, embora ela se apresentasse como uma mulher altiva”, destaca Ramon, referindo-se a Cantos da Angústia, título de um dos livros de poesia da escritora, lançado em 1948.

Desde 2015, foram reeditados pela José Olympio, mesma editora que publicou as obras de Adalgisa em vida, os romances A Imaginária, uma autoficção, e Neblina. Por considerar a produção poética de Adalgisa desigual, o organizador pretende reeditar sua poesia em uma antologia. Ligada ao modernismo brasileiro, foi muito amiga de Graciliano Ramos e Murilo Mendes, assim como dos pintores Frida Kahlo, Diego Rivera e Cândido Portinari. “A escrita dela mostra que não há um modernismo brasileiro, há modernismos”, diz Ramon, que considera os textos da também jornalista muito ligados ao pré-existencialismo do primeiro marido.

Quando se fala sobre a angústia de Adalgisa, aliás, deve-se pensar em Ismael Nery. Em A Imaginária, o alter ego da autora narra situações constantes de humilhação pelas quais o marido a fazia passar. A arma que o cultuado pintor surrealista usava era o abuso psicológico, sempre tentando colocá-la em situação de inferioridade. Proibia Adalgisa de participar dos eventos que fazia em sua própria casa para artistas e intelectuais, referindo-se a ela com desprezo, fazendo pouco-caso de sua existência. Não suficiente, Adalgisa também sofreu na maternidade. Teve oito filhos com Ismael, sendo que apenas o primeiro e o último sobreviveram.

Amiga de artistas renomados, Adalgisa Nery foi retratada por muitos dos grandes pintores do século XX. Entre eles, Diego Rivera, companheiro de Frida Kahlo. Na foto à esquerda, de 1945, Frida está no centro, entre Adalgisa e Lourival, segundo marido da brasileira. Nos dois extremos estão o pintor Rufino Tamayo e sua esposa, Olga. Foto: Arquivo Diego Rivera e Frida Kahlo

Só depois de enviuvar, em 1934, Adalgisa se tornou escritora. Lançou seu primeiro livro em 1937, e a partir daí teve uma produção constante até dois anos antes de se recolher, espontaneamente, em uma casa de repouso, onde morreu. O casamento com Lourival Fontes, jornalista responsável pelo Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo, foi outro motivo de controvérsias. Amigos de Adalgisa se espantavam ao ver uma mulher como ela, ligada a ideais de esquerda e que chegou a ser fichada como comunista, casada com um agente autoritário de Getúlio. Alguns, inclusive o dono da editora pela qual publicava, diziam que ela havia se casado com Lourival apenas pelo sadismo de fazer ciúmes para Murilo Mendes, que a cortejava insistentemente.

Ramon perseverou para conseguir que os livros fossem reeditados pela própria José Olympio. “Fico muito feliz em trazê-la de volta pela mesma editora 35 anos depois”, confessa. E completa: “A gente publica tanta coisa nova com qualidade não tão boa, sendo que temos muitos autores antigos bons e esquecidos”. Até o fim do ano, pretende publicar a mencionada antologia poética e um livro de contos de Adalgisa.

Hospício

Outra que ganhou nova projeção em meados de 2015 foi a jornalista mineira Maura Lopes Cançado (1929-1993), depois que uma caixa com seus dois livros foi lançada pela Autêntica, por iniciativa da jornalista Daniela Lima. Entre a loucura e a lucidez, Maura foi muito comparada a Clarice Lispector, especialmente por conta do viés radicalmente subjetivo de sua obra, que discute tanto a esquizofrenia quanto a questão de gênero.

Internada algumas vezes em hospitais psiquiátricos, escreveu o diário Hospício é Deus aos 29 anos, quando internada no hospital Gustavo Riedel, no Rio de Janeiro. O livro só foi editado e lançado seis anos depois, em 1965. Sua segunda e última obra publicada, a coletânea de contos O Sofredor do Ver, é de 1968. Esta já tinha ganhado uma reedição para associados da Confraria dos Bibliófolos, em 2012.

Vítima de abusos sexuais na infância, apresentava tendências suicidas. Ainda na adolescência, teve um filho com seu primeiro e único marido, com o qual se casou aos 14 anos. Um ano depois se separou. Em uma das vezes em que foi internada, assassinou outra paciente numa crise esquizofrênica.

Esses aspectos chocantes de sua bio­­grafia são mais lembrados que sua obra. “Talvez a pior das violências seja o esquecimento. E essa violência que  Maura sofreu, inclusive em vida, estará sendo corrigida aos poucos por todos que contribuírem para que os seus livros sejam lidos”, escreveu, em 2013, Daniela Lima em uma publicação na página de Facebook criada por ela para preservar a memória de Maura. Desde então, a pesquisadora já recolhia material para uma produção editorial sobre a escritora.

Em uma das vezes que foi recolhida em um hospício, Maura assassinou outra interna. Foto: Arquivo de família

Um pouco mais velha que as duas já citadas, Albertina Bertha (1880-1953) teve seu romance Exaltação co­locado à luz pela Biblioteca Nacional e a Gradiva Editorial no começo de 2016. O trabalho da pesquisadora Anna Faedrich evidencia a obra que foi um grande sucesso há um século. Isso porque o título foi considerado o maior romance feminista brasileiro, por debater questões de gênero como nenhum outro havia feito até então. Albertina também se destacava por debater política e direitos humanos.

Foi essa questão do apagamento da mulher na literatura que fez Anna se interessar por Albertina. Depois de estudar as características de estética, técnicas e subjetividade da escrita da autora, decidiu retomar o estudo sobre ela de forma mais sociológica. “Albertina Bertha e sua obra são um bom exemplo, entre muitos, das dificuldades de superar as pressões e opressões silenciosas que empurram os portadores de alguns atributos – o gênero, a cor, a origem ou as preferências – para se tornarem aquilo que queremos que sejam”, aponta Faedrich.  Ela também está envolvida na reedição do livro Nebulosas, da poeta Narcisa Amália (1856-1924), e de uma edição dos Cadernos da Biblioteca Nacional sobre crônicas de Júlia Lopes de Almeida (1862-1934). O primeiro tem previsão de lançamento para abril deste ano.

Por meio da coleção de cordéis Heroínas Ne­gras do Brasil, a escritora cearense Jarid Arraes foi mais longe e resgatou a história de Maria Firmina dos Reis (1825-1917), entre outras. Negra, Firmina é considerada a primeira ro­­mancista da literatura brasileira e também a primeira a abordar questões abolicionistas.

Além do machismo, Firmina teve de enfrentar o racismo. O sociólogo e pesquisador Rafael Balseiro Zin levantou em artigo publicado na terceira Revista do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc uma curiosidade: a imagem mais usada para representar a autora não é dela, e sim da escritora gaúcha Maria Benedita Bormann, que era loira de olhos azuis. Segundo Zin, isso reforça o preconceito da época, já que sugere o raciocínio: “se escrevia, era branca”.

Feminismo possível

Também abolicionista e merecedora de destaque, Júlia Lopes ganhou espaço ao ter seus livros reeditados pela Editora Mulheres ao longo das duas décadas que a casa editorial está em atividade. Gerida por um grupo de pesquisadoras e especialmente por Zahidé Muzart, referência na área acadêmica e falecida em outubro de 2015, a Mulheres foi criada justamente para resgatar figuras femininas importantes do ostracismo.

O último livro de Júlia lançado pela Mulheres data de 2014, sendo sua obra um dos carros-chefes da casa. Sua criação é diversa e contém três dezenas de títulos, entre os quais figuram romances, peças teatrais, contos e até mesmo livros escolares. Curiosamente, Júlia foi uma das pessoas que idealizaram a Academia Brasileira de Letras, que só abriu as portas para as mulheres após sua morte.

Estudiosos como Leonara de Luca caracterizam a obra de Júlia como dotada de um “feminismo possível”. Ou seja, a atuação da autora no que dizia respeito à liberação da mulher era significativa, mas não chegava a ferir os padrões da época.  Sua atuação como escritora e jornalista se desenrolou por mais de 40 anos, abordando nos textos situações cotidianas nas quais a mulher era subjugada.

Aos poucos, o Brasil vai descobrindo e conhecendo tesouros nacionais deixados de lado durante o processo de construção do que hoje é o cânone literário – isto é, o conjunto de autores e obras que são indispensáveis. Para Nunes Mello, esse processo é carregado de senso de justiça, por dar a essas mulheres o espaço que merecem. Balseiro Zin reforça: vê essa configuração do cânone como fruto do contexto sociológico patriarcal e também escravocrata que sempre existiu no Brasil.

A organizadora da obra de Albertina, Anna Faedrich, concorda: “Resgatar escritoras que se perderam na memória da literatura, durante o processo de sedimentação do cânone literário atual, é um movimento importante, no campo da história literária e da luta política. Esse movimento, me parece, é parte de uma luta mais abrangente por reconhecimento de grupos, setores e histórias, parte da nova institucionalidade democrática brasileira, embora ela esteja sofrendo algum abalo recentemente”. Ela também acredita que “o trabalho de recuperação da literatura produzida por mulheres só pode ser coletivo e, na medida em que ganhe fôlego, permitirá repensar nossa história – e nossa história literária – e as pequenas e grandes exclusões do dia a dia”. Por isso, espera subsídios e contribuições para um projeto que pretende realizar: um site que tenha a história da literatura brasileira reescrita para incluir os esquecidos.


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