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que justifiquem nossa atitude.
Sem dúvida, isto exige alguma explicação. Creio que se trata do seguinte. Durante
períodos de tempo incalculáveis, a humanidade tem passado por um processo de
evolução cultural (sei que alguns preferem empregar o termo ‘civilização’). É a esse
processo que devemos o melhor daquilo em que nos tornamos, bem como uma boa
parte daquilo de que padecemos.
Embora suas causas e seus começos sejam obscuros e incerto o seu resultado,
algumas de suas características são de fácil percepção. Talvez esse processo esteja
levando à extinção a raça humana, pois em mais de um sentido ele prejudica a função
sexual; povos incultos e camadas atrasadas da população já se multiplicam mais
rapidamente do que as camadas superiormente instruídas.
Talvez se possa comparar o processo à domesticação de determinadas espécies
animais, e ele se acompanha, indubitavelmente, de modificações físicas; mas ainda
não nos familiarizamos com a idéia de que a evolução da civilização é um processo
orgânico dessa ordem. As modificações psíquicas que acompanham o processo de
civilização são notórias e inequívocas. Consistem num progressivo deslocamento dos
fins instintivos e numa limitação imposta aos impulsos instintivos. Sensações que
para os nossos ancestrais eram agradáveis, tornaram-se indiferentes ou até mesmo
intoleráveis para nós; há motivos orgânicos para as modificações em nossos ideais
éticos e estéticos.
Dentre as características psicológicas da civilização, duas aparecem como as mais
importantes: o fortalecimento do intelecto, que está começando a governar a vida do
instinto, e a internalização dos impulsos agressivos com todas as suas conseqüentes
vantagens e perigos. Ora, a guerra se constitui na mais óbvia oposição à atitude psíquica
que nos foi incutida pelo processo de civilização, e por esse motivo não podemos evitar de
nos rebelar contra ela; simplesmente não podemos mais nos conformar com ela. Isto não
é apenas um repúdio intelectual e emocional. Nós, os pacifistas, temos uma intolerância
constitucional à guerra, digamos, uma idiossincrasia exacerbada no mais alto grau.
Realmente, parece que o rebaixamento dos padrões estéticos na guerra desempenha
um papel dificilmente menor em nossa revolta do que as suas crueldades.
E quanto tempo teremos de esperar até que o restante da humanidade também
se torne pacifista? Não há como dizê-lo. Mas pode não ser utópico esperar que esses
dois fatores, a atitude cultural e o justificado medo das conseqüências de uma guerra
futura, venham a resultar, dentro de um tempo previsível, em que se ponha um término
à ameaça de guerra.
Por quais caminhos ou por que atalhos isto se realizará, não podemos adivinhar. Mas
uma coisa podemos dizer: tudo o que estimula o crescimento da civilização trabalha
simultaneamente contra a guerra.
Espero que o senhor me perdoe se o que eu disse o desapontou, e com a expressão
de toda estima, subscrevo-me.
Cordialmente,
Sigmund freud
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