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LIVROS RESENHA


 PASOLINI,    lhe renderá acusações de saudosismo do universo camponês e   do temor de se contradizer e a poder se colocar “em condição

          do passado). “Quem manipulou e mudou radicalmente as gran-
                                                             de não ter nada a perder e, portanto, de não ser fiel a pacto
 ESCANDALIZADO  des massas camponesas e operárias italianas é um novo Poder,  nenhum, a não ser aquele com um leitor que considero digno
          para mim muito difícil de definir, mas tenho certeza de que é o
                                                             de pesquisas cada vez mais ousadas”.
          mais violento e totalitário que já existiu: ele muda a natureza das
                                                                Não se deve confundir as observações acima sobre a liber-
          pessoas, alcança o mais profundo das consciências”. Pasolini   dade (mesmo que decorrida da solidão) do intelectual com o
          conta observar uma “tristeza física” profundamente neurótica na   isolamento dessas figuras em si mesmas, malvisto pelo autor
 Celebrado por sua produção cinematográfica, Pier   população. “Ela resulta de uma frustração da sociedade. Agora  – o divórcio do mundo real, o academicismo e a oficialidade são
 Paolo também se dedicou à literatura e à poesia; duas   que o modelo social a ser realizado já não é o da própria classe,   tampouco estimados por ele. Em um de seus entreveros com os
 recentes publicações nacionais ajudam a iluminar essa   mas imposto pelo Poder, muitos não são capazes de realizá-lo. E   intelectuais italianos, Pasolini conta: “Pude comprovar que os
 parte de sua vida pessoal e intelectualidade crítica  isso os humilha terrivelmente”, relata o poeta.  intelectuais italianos jamais se colocaram o problema da ‘cultura’
            Diante da consolidação dos valores do capitalismo (ao qual   popular, e nem mesmo sabem do que se trata. Acreditam que
 por miguel groisman  Pasolini passa a se referir simplesmente como “Poder”), o poeta   o povo não tem cultura porque não tem cultura burguesa; ou
          alarma para o risco de “uma forma de desumanização, de uma   então, que a cultura deles seja aquela larva de cultura burguesa
 a simplifiCação neCessária para apresentar Pier Paolo Pasolini é uma tarefa   forma de afasia atroz, de uma brutal ausência da capacidade   que podem aprender na escola, na caserna ou, de qualquer
 inglória: suas facetas foram múltiplas; entre elas, a escolhida pela professora   crítica, de uma facciosa passividade”. Contra sua própria previ-  modo, nas relações burocráticas com a classe dominante. Que
 Maria Betânia Amoroso para representá-lo foi a de um certo “diagnosticador dos   são, Pasolini trava uma fraquejante batalha, para a qual encontra   o povo, portanto, viva numa espécie de sonho pré-cultural, isto
 tempos que viriam” à sua frente. Uma das principais estudiosas do cineasta italiano   consolo insuficiente nos colegas intelectuais, já que “o perigo   é, pré-moral e pré-ideológico. Onde moral e ideologia são vistas
 no Brasil, Amoroso foi a responsável pela tradução e apresentação dos Escritos   da entropia burguesa era iminente, mas ainda reconhecido por   como apanágio exclusivo da classe burguesa”.
 Corsários (Editora 34), um compilado de artigos críticos de Pasolini, e pelo livro   poucos da sua geração, que irão precisar da queda do muro de   Como todo documento histórico, os Escritos Corsários
 homônimo a ele, publicado este ano pela Editora Nós, em que Amoroso reúne uma   Berlim e do avanço neoliberal para admitir que o diagnóstico de   precisam ser lidos dentro das suas coordenadas de situação,
 parcela da sua pesquisa notável acerca do mesmo (as intervenções da professora   Pasolini era no mínimo esclarecedor”, como Amoroso explica.  mas questões como as trazidas acima poderiam ser colocadas
 mencionadas a seguir virão deste compilado).  Todavia, nos Escritos Corsários o intelectual parece continuar a   ao presente, assim como sua provocação sobre o que hoje cha-
 No ano de seu centenário, mostras e retrospectivas iluminam sua celebrada   conversar, em vezes, com esses mesmos contemporâneos, ao   mamos de cultura do cancelamento: “Quem sentisse a neces-
 contribuição cinematográfica – composta por títulos como Mamma Roma, O   expressar sua indignação perante o conformismo (“A sede de   sidade primária de me ‘revogar’ [...] estaria aprioristicamente
 Evangelho segundo São Mateus, A Trilogia da Vida e Salò ou os 120 dias de Sodoma.   conformismo é, portanto, igual ao pudor [...] a embriaguez de servir   impedido de compreender qualquer outra coisa que eu dissesse,
 No entanto, antes mesmo de contribuir com a sétima arte, Pasolini já se dedicava   ao Poder uma gratificação”) e uma forma de resistência descrita   porque, como bem sabem os advogados, é preciso desacre-
 à poesia e à literatura, e, mesmo quando já inserido na indústria da imagem em   como essencialmente bem-vinda ao Poder.  ditar, sem piedade, integralmente a pessoa que testemunha
 movimento, ele não abandonou tais vocações, muito menos a dedicação ao espírito   Com o passar do tempo, sua investida contra o Poder não   para desacreditar o seu testemunho”. Uma das contradições
 crítico, cuja manifestação consciente ocorre ainda em sua juventude. “O próprio   esmaece. Amoroso nota que “ao ler Pasolini hoje, percebe-se   desta complexa figura (que pode ser observada nos Escritos
 fato de os primeiros versos publicados (e até hoje não repudiados), versos dos 18   que, por um lado, as interpretações dadas ao rumo tomado pela   Corsários e exemplificada neste tópico) é que o próprio Pasolini,
 anos, serem em friulano demonstra que a minha operação poética se dava sob   sociedade italiana iam se tornando cada vez mais contundentes e   mesmo com seu compromisso intelectual livre e sério, não é
 o signo de uma inspiração fortemente crítica, intelectual”, chegou a confirmar. O   alarmadas, mas que, por outro, o poeta exalava vitalidade e vigor”.  imune à condenação da testemunha no lugar do testemunho,
 dialeto em questão era falado por sua mãe, Susanna Colussi Pasolini, nascida em   A energia descrita pela professora não preclude, no entanto, um   ou à invocação da castrante culpa moral judaico-cristã.
 Casarsa della Delizia, cidade localizada no norte da Itália. Como assinala Amoroso,   crescente afastamento de Pasolini. Em seu livro, ela traz à tona a   Talvez Pasolini fosse, como referido pela publicação francesa
 além do aspecto afetivo da escolha, Pasolini emprega o friulano para “expressar toda   apresentação que o escritor faz ao estrear sua coluna O caos, no   Les Cahiers du Cinéma, um “incendiário”, mas não despropo-
 uma cultura e sentimentos que foram silenciados ou expurgados pelo fascismo”.  jornal Tempo. Lá, ele afirma: “Se sou independente, sou-o com raiva,   sitado. Suas provocações vão muito além dos tópicos trazidos
 Tendo nascido em Bolonha, em março de 1922, seu contato tardio com a região   dor e humilhação, não aprioristicamente, com a calma dos fortes,  ao longo deste texto; abrangem da religião ao anticlericalismo;
 do Friul (onde chegou a morar com a mãe e o irmão Guido a partir de 1943, antes   mas forçadamente. [...] Meu caso não é de indiferentismo nem de   da sacralização, dessacralização e ressacralização; do amor
 de ir para Roma no começo da década seguinte) é formativo porque, segundo   independência: é de solidão”. Um lamento também traduzido em   materno ao conflito de gerações; do sexo ao aborto; do racional
 Amoroso, “seu interesse pela língua falada pelos camponeses da região levou-o a   poema pelo mesmo: “E eu, feto adulto, perambulo mais moderno   ao irracional; da linguagem, dos dialetos ao comportamento;
 descobrir um mundo cheio de mistérios e encantamento que se opunha à cidade,   que todos os modernos à procura de irmãos que não existem mais”.   do progresso ao “desenvolvimento”. Quando se pensa ter
 à sua própria tradição familiar. Nascem dessa convivência o profundo respeito   Por outro lado, Pasolini assinala esse sofrido apartamento como   percorrido a circunferência completa em torno de Pasolini, ele
 de Pasolini pela cultura camponesa, vital, rica, diversificada, e a familiaridade   algo, até certo ponto, necessário para o exercício crítico: “É isso,  faz a eversão de sua própria esfera. A professora Maria Betânia
 com seus significados e símbolos”. Ela complementa que “lá, pela primeira vez, o   de resto, o que me garante uma certa (talvez louca e contraditória)   Amoroso lembra que pouco antes de ser brutalmente assas-
 escritor assiste a um confronto entre os trabalhadores rurais da sua região e os   No topo, Pier Paolo Pasolini, de Maria   objetividade. Não tenho atrás de mim ninguém que me apoie e   sinado, Pasolini desejava, fosse por reinvenção ou redenção,
 proprietários de terras”.  Betânia Amoroso, publicado pela   com o qual eu tenha interesses comuns a defender”.  reescrever suas obras.
 Sua vivência no Friul também fornecerá um rico contraponto mental à transfor-  Editora Nós, 2022; abaixo, Escritos   Na sua reflexão acerca da conduta ideal do crítico, Pasolini   “Talvez o leitor possa achar que digo coisas banais. Mas
 Corsários, de Pier Paolo Pasolini, com
 mação ocorrida na Itália – por meio do avanço do capitalismo e do seu materialismo   tradução de Maria Betânia Amoroso,   ressalta a importância do diálogo e de uma certa abdicação de   quem se escandaliza é sempre banal. E eu, infelizmente, estou
 desumanizante –, frequentemente trazida por Pasolini em suas críticas (o que   publicado pela Editora 34, 2020  ambas autoridade e credibilidade, gesto ao qual ele liga à libertação   escandalizado”.

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