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Germana Monte-Mór, sem título, 2020; Germana Monte-Mór, sem título, 1958; Germana Monte-Mór, sem título, 1958
e luminosas que, num jogo de atração, aumentava a Justamente porque está para além de nós, porque
expansão das áreas negras. aí a vontade não reina, ainda que prometamos a cada
O mundo que surgia nesses desenhos tinha uma vez não mais bater nessa porta. E ela agora chega
constituição meio violenta e traumática. E, a partir aqui novamente. Manteve sua experiência de base e
dos anos 2000, como ocorre na vida, introduziu-se a saiu enriquecida. A alegria é também a prova dos nove.
alegria das áreas e relevos de cores luminosas. Para Como dizia o poeta levantino, toscamente traduzido
mostrar-se com força, o mundo precisava tornar-se por mim: “Não é a água que passa/ que mata a sede/
desmedido. A intensidade das superfícies negras advi- é a que se bebe / é preciso subir aos céus/ descer aos
nha da capacidade de extravasar seus limites, mais do infernos/ para conhecer uns poucos”.
que de uma saturação ou de extrema concentração. Tenho a impressão de que o reencontro de Germana
E decorria disso o caráter traumático dos trabalhos: com a obra de Hans Arp trouxe na bagagem a crítica a
para afirmar-se, as regiões negras deveriam incessan- seus contemporâneos modernos com seu viés dadaísta,
temente mover-se para além de si e entrechocar-se que ironizava a forma marcada que vem de Cézanne.
entre as regiões coloridas, colocando no horizonte Penso que o ceticismo dos trabalhos de Germana com
uma identidade que jamais poderia ser alcançada. asfalto – muito bons por sinal – ao cruzar com Arp,
Penso ser essa também a razão de uma espécie de produz uma improvável tangência com nossa tradição,
sensualidade dolorida que permeia todos os desenhos com Amilcar de Castro, sobretudo.
de Germana Monte-Mór. O movimento em direção ao Além disso a dimensão vitalista, orgânica de Ger-
que está além de nós — a busca de uma continuidade mana renovou a escultura de Maria Martins ou de Lygia
com o outro implicada no erotismo — revela-se como Clark. Sem a mania pós-modernista de citar momentos
uma condenação ao degredo, como desassossego e importantes da história da arte, a artista mantém com
dor. Sem nunca perder a serenidade. a tradição moderna, uma conversa bem-humorada.
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