Page 27 - ARTE!Brasileiros #60
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APRESENTAÇÃO                                    1 Esse texto tem como objetivo ao mesmo tempo
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               A TERCEIRA MARGEM DA REPARAÇÃO        1       do Testemunho – SP, assim como introduzir a temática
                                                             trabalhada por diversos textos contidos neste livro. Neste
               Equipe da Clínica do Testemunho do Instituto Pro- sentido, encontraremos aqui uma composição entre a
            jetos Terapêuticos, com redação final de Rodrigo Blum  teoria e a clínica, bem como a produção conceitual dos
               O ano de 2014 marcou os 50 anos do golpe no Brasil   diversos autores
            e 40 da sistematização da doutrina de segurança nacio-  2 Maria Auxiliadora de A. C. Arantes. Tortura: teste-
 O conceito de reparação abrange vários aspectos numa sociedade.   nal, verdadeira “arquitetura de exceção” projetada pela   munhos de um crime demasiadamente humano. São
 Um deles é a obrigação do Estado de cuidar daqueles cidadãos - e   ditadura civil-militar.  Paulo: Casa do Psicólogo, 2013, p. 129.
 de suas respectivas famílias - que foram objetos do terrorismo que o   O estado de exceção no Brasil ‘destruiu livros e
 mesmo tenha cometido durante períodos sombrios de sua história  documentos, invadiu campi universitários, proibiu lei- MEMÓRIA SEM LEMBRANÇA*
            turas de obras e de autores considerados antifascistas,
 Por Patricia rousesaux  socialistas, comunistas entre outros. Censurou textos,   Por Moisés Rodrigues da Silva Junior**
            livros, letras de músicas, peças de teatro e criou a fun-
            ção do censor em redações de jornais e em veículos   O que exatamente se configura como tortura? As
            de comunicação; legitimou a delação, a espionagem   técnicas ancestrais do grande inquisidor Torquemada?
            entre vizinhos, a escuta telefônica e criou um clima de   O pau-de-arara, os aparelhos de choques elétricos? Na
            suspeição, incômodo e de vigilância permanente. Prin- imaginação de muitas pessoas essas são as primeiras
            cipalmente, instituiu a pena de morte por fuzilamento e   cenas que ocorrem quando falamos em tortura.
            o banimento do solo brasileiro. Não instituiu legalmente   Para a grande maioria são só essas as cenas e, por
            duas figuras trágicas que, se legalizadas, colocariam  isso mesmo, acabam fechando os olhos ou os ouvidos a
            explicitamente o país na contramão das Convenções  uma série de outras formas mais sutis mas igualmente
            de Genebra: a autorização para a tortura e o desapare- cruéis de atormentar o outro. As simulações de execu-
            cimento forçado dos opositores capturados’ .     ções, ser testemunha da tortura de pessoas queridas,
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               Meio século após o fatídico golpe militar de 1964,  as ameaças de estupro, o manuseio de genitais e o
            os efeitos traumáticos deste terrível período da nossa   isolamento apareceram vinculados a, pelo menos, tanta
            história começam a ser trazidos à público.       angústia quanto à causada por métodos físicos.
               […] Até os dias de hoje guardamos, através das gera-  Não são somente os abusos físicos e visíveis que
            ções, as marcas dos efeitos devastadores decorrentes   devem ser levados em conta. A manipulação psicoló-
            da violência traumática exercida pelo poder das dita- gica, a humilhação, a privação sensorial e as posturas
            duras latino-americanas que, entre as décadas de 60 e   forçadas causam tanto dano, estresse e angústias
            80 do século XX, amparadas pelo discurso da doutrina   como a tortura física.
            de segurança nacional, instituíram como política de   No Brasil, desde a Constituição Imperial de 1824,
            atuação o terrorismo de estado. Um poder institucional   firma-se uma declaração contra a tortura e outros tra-
            inquestionável, implacável, com uma lógica de operar  tamentos desumanos: “Desde já ficam abolidos os
            aleatória e sujeita a uma total arbitrariedade, sustentada   açoites, a tortura, a marca do ferro quente, e todas
            por uma estrutura institucional que coordenou a imple- demais penas cruéis”. Ainda assim, em nossas cons-
            mentação de uma política de desorientação 14 e terror.  tituições republicanas nada é apresentado sobre a
               Segundo Giorgio Agamben (2004) trata-se de uma   prática da tortura (Constituições de 1891, 1934, 1937,
            forma de exercício de poder a partir da qual os concei- 1946 e 1967), exceto uma menção na Constituição de
            tos de direito subjetivo e proteção jurídica deixaram de  1967 quanto ao “respeito à integridade física e moral
            fazer sentido. O que se faz com este terror que assom- do detento e do presidiário”.
            bra? É possível deixar de repetir o trauma? Como se   […] A tortura, por seu caráter brutal determinado
            aproximar das experiências de horror que, às vezes, só   pela ação humana deliberada, que tem por objetivo,
            são conhecidas pelas marcas deixadas nos pais e que   anular pessoas, aterrorizá-las, e que por sua dimensão
            atravessam as gerações?                          coletiva e política vale-se de características particulares

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