Page 31 - ARTE!Brasileiros #60
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o sujeito enfrentado com a máxima vulnerabilidade e “comunidade de destino” a partir da precariedade de
            impotência, restando apenas “(…) a autodestruição,  seus membros. Nas palavras de Ecléa Bosi (1995): “A
            a qual, enquanto fator que liberta da angústia, será  comunidade de destino se refere ao fato de que um
            preferida ao sofrimento mudo.” (p. 111)          grupo de pessoas pode reunir-se, sem certezas prévias,
                                                             para discutir ou construir seu próprio destino.” (p. 34)
               TRAUMA E DESMENTIDO SOCIAL                      […] O pensamento de Ferenczi nos aponta para uma
                                                             possibilidade de vínculo que, ao invés de constituir-se
               Ferenczi (1931) postula a realidade do trauma. O   em torno da autoridade e da ilusão de garantias, sus-
            fundamental aqui não é a noção de realidade, mas, prin- tenta-se sobre uma mesma “comunidade de destino”.
            cipalmente, o que pode ser entendido como traumático.  O quanto se  quanto se acolhe um sujeito traumatiza-
            Uma catástrofe não é necessariamente traumática; ela   do, o quanto se admite a sua queixa de uma injustiça
            pode se tornar traumática se, ao desastre, se somar esse   sofrida, o quanto se reconhece a sua necessidade de
            outro elemento, capaz de minar a confiança básica em   reparação: tudo isso configura uma necessidade que
            si, no outro, na vida. “O pior é realmente o desmentido,  deve se estender ao campo da cultura, do direito, e
            a afirmação de que não aconteceu nada, de que não   da política. O grande ensinamento destes tempos em
            houve sofrimento (…) é isso, sobretudo, o que torna o   que vivemos tem sido que o laço social está ancorado
            traumatismo patogênico.” (p. 79)                 no próprio fundamento do político enquanto arte de
               Por desmentido entenda-se o não reconhecimen- viver juntos.
            to e a não validação perceptiva e afetiva da violência
            sofrida. Trata-se de um descrédito da percepção, do
            sofrimento e da própria condição de sujeito daquele que   RefeRências
            vivenciou o trauma. Portanto, o que se desmente não é   ABRAHAM, N. & TOROK, M. A casca e o núcleo. São
            o acontecido, mas o sujeito. Este modelo não privilegia   Paulo: Escuta. 1995
            personagens, e sim relações. Relações de poder, de    ANTELME, R. A espécie humana. São Paulo:
            desvalorização, de desrespeito, enfim, relações políticas   Record, 2013
                                                                  DELEUZE, G. Diferença e repetição. Rio de Janeiro:
            com o envolvimento de afetos como vulnerabilidade,    Graal, 1988.
            humilhação e vergonha, cujas implicações são neces-   EITINGER, L. Prisión en campo de concentración y
            sariamente políticas.                                 traumatización psíquica. In: AZPIROZ, M. R. A. (Org.)
                                                                  Represión y olvido: efectos psicológicos y sociales de
                                                                  la violencia política dos décadas después. Montevideo:
               RECONHECIMENTO: CAMINHO DA CURA                    Roca Viva, 1995.
                                                                  ERIKSON, E. Trauma y comunidade. In: ORTEGA,
               Considerar o reconhecimento como o avesso do       F. (Org.) Trauma, cultura e historia: reflexiones
            desmentido implica dizer que efeitos traumáticos podem   interdisciplinarias para el nuevo milenio. Bogotá:
                                                                  Universidad Nacional de Colombia, 2011.
            ocorrer quando alguém não é reconhecido na sua condi-  FERENCZI, S.
            ção. Não é possível uma posição neutra a este respeito:   (1922). Psicanálise e política social. In: Obras completas.
            o desmentido, enquanto não-validação das percepções   São Paulo: Martins Fontes, 1992.
            e dos afetos de um sujeito, pode ser entendido como   (1931). Análises de crianças com adultos. Op. cit., v. IV
            um reconhecimento recusado. Nessa linha, podemos      (1932). Diário clínico. São Paulo: Martins Fontes, 1990
                                                                  Publicado originalmente na revista Percurso (ano XXVI,
            dizer que o reconhecimento é, em primeiro lugar, reco-  n. 52, pp. 119-124, 2014).
            nhecimento da vulnerabilidade de um sujeito.        **  Moisés Rodrigues da Silva Júnior, médico, psicanalista,
               Para Ferenczi (1932) o sujeito é vulnerável na relação   analista institucional. Membro do Departamento de
            com o outro, o que implica também o reconhecimento da   Psicanálise do Instituto Sedes Sapientia e Professor do
                                                                  Curso de Psicanálise do mesmo instituto. Coordenador
            própria vulnerabilidade. Inaugura-se, assim, a possibili-  da Clínica do Testemunho do Projetos Terapêuticos
            dade de uma comunidade constituída horizontalmente,   (2013-2016).



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