Page 30 - ARTE!Brasileiros #60
P. 30
VII SEMINÁRIO CULTURA, DEMOCRACIA E REPARAÇÃO ARTIGO
humanas, não podendo ser considerada um “excesso” *a capacidade laboral fica muito diminuída,
produzido por um sádico isolado. É, sim, uma institui- às vezes até impossibilitada;
ção política do estado, produtora de subjetividade não *além do traumatismo inicial, devem ser leva-
apenas em suas vítimas diretas, mas também em seus dos em conta os efeitos agravantes produzidos
familiares, descendentes e por irradiação no conjunto pela retraumatização posterior;
do tecido social. *alguns sintomas de sequelas aparecem logo
A experiência extrema que a tortura produz sempre depois de longos períodos aparentemente assin-
marca e transforma o destino do torturado que se apre- tomáticos (20, 30, 40 anos após o ato);
senta como a testemunha encarnada de uma ferida que *as doenças físicas, as hospitalizações, as
concerne a todos. Seu corpo ferido se oferece como intervenções cirúrgicas etc. são mais graves e
símbolo, como bandeira em que se inscreve o que nele frequentes em sociedades que sofreram atos
foi atingido e que Robert Antelme (2013) chama de de tortura.
“sentimento de pertença à espécie humana”. Pensando nessas condições que a tortura imprime
Assim, o clima de terror generalizado e a instituciona- na sociedade, direcionamos o foco de nosso trabalho às
lização da tortura se traduzem, na subjetividade, como sequelas psicológicas dos envolvidos nos atos de tortura
perda do apoio social necessário a seu funcionamento. e numa possível abordagem clínica dessas situações.
Como descreve Eric Erikson: “(…) o eu continua existindo,
ainda que tenha sofrido dano e mesmo mudanças per- CLÍNICA SEMPRE POLÍTICA
manentes; o tu continua existindo, ainda que distante,
e pode ser difícil se relacionar com ele; mas o nós deixa Segundo Gilles Deleuze (1988), as questões com
de existir.” (p. 73) as quais a psicanálise se defronta são inevitavelmen-
Situações de grande violência e silenciamento social te políticas. Tratam sempre do “quanto” e do “como”
golpeiam diretamente os tecidos básicos da vida (social) o desejo pode se produzir e se expressar diante das
constituídos pelos vínculos que ligam mutuamente as injunções de assujeitamento. Responder clinicamente
pessoas causando um prejuízo na confiança no entorno aos traumas de natureza diversa aos traumas sexuais
social, na família, na comunidade, nas estruturas do infantis desafia o clínico a elaborar conceitos úteis à
governo, na lógica mais geral em que vivemos. A matriz situação, em que a experiência traumática está deter-
da constelação identificatória, base do sentimento de minada por uma política de estado com um primeiro
pertencimento à humanidade e da própria identidade, se e explícito objetivo de fazer falar secundado por uma
abala de forma profunda alterando seu funcionamento. busca de silenciamento social.
Mesmo não tendo um quadro sintomatológico único, Nicolas Abraham & Maria Torok (1995), compro-
nem uma síndrome unívoca, as sequelas psicológicas metidos com a ideia de uma psicanálise com feições
da tortura são sérias e permanentes, com tendência ao humanas e atenta à aceitação do humano, em todo seu
agravamento com o passar dos anos, e mais. Segundo sofrimento, diziam que, se alguém lhes pedisse para
Léo Eitinger (1995), a lista de danos é extensa: resumir em uma única palavra o conjunto da temática
*a experiência traumática produz sequelas ferencziana, esta seria catástrofe e seus sinônimos:
transgeracionais; traumas, acidentes, afecções, pathos.
*o índice de psicoses é cinco vezes mais eleva- Para Sándor Ferenczi (1931), a reação imediata
do do que nas populações que não as sofreram; ao trauma é uma “agonia psíquica e física que acar-
*a taxa de suicídio é de 16 a 23% mais elevada reta uma dor tão incompreensível e insuportável” (p.
nas sociedades onde a tortura ocorreu a inserção 79) que o sujeito precisa distanciar-se de si mesmo,
social é muito difícil, as rupturas familiares são vivendo num estado de suspensão. As descrições de
frequentes; Ferenczi (1934) em relação à comoção psíquica fazem
*a inserção social é muito difícil, as rupturas referência ao terror, à catástrofe, à morte. O desprazer
familiares são frequentes; causado pelo excesso não pode ser superado, estando
30