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VII SEMINÁRIO CULTURA, DEMOCRACIA E REPARAÇÃO ARTIGO











            humanas, não podendo ser considerada um “excesso”       *a capacidade laboral fica muito diminuída,
            produzido por um sádico isolado. É, sim, uma institui-  às vezes até impossibilitada;
            ção política do estado, produtora de subjetividade não   *além do traumatismo inicial, devem ser leva-
            apenas em suas vítimas diretas, mas também em seus    dos em conta os efeitos agravantes produzidos
            familiares, descendentes e por irradiação no conjunto   pela retraumatização posterior;
            do tecido social.                                       *alguns sintomas de sequelas aparecem logo
               A experiência extrema que a tortura produz sempre   depois de longos períodos aparentemente assin-
            marca e transforma o destino do torturado que se apre-  tomáticos (20, 30, 40 anos após o ato);
            senta como a testemunha encarnada de uma ferida que     *as doenças físicas, as hospitalizações, as
            concerne a todos. Seu corpo ferido se oferece como    intervenções cirúrgicas etc. são mais graves e
            símbolo, como bandeira em que se inscreve o que nele   frequentes em sociedades que sofreram atos
            foi atingido e que Robert Antelme (2013) chama de     de tortura.
           “sentimento de pertença à espécie humana”.          Pensando nessas condições que a tortura imprime
               Assim, o clima de terror generalizado e a instituciona- na sociedade, direcionamos o foco de nosso trabalho às
            lização da tortura se traduzem, na subjetividade, como   sequelas psicológicas dos envolvidos nos atos de tortura
            perda do apoio social necessário a seu funcionamento.  e numa possível abordagem clínica dessas situações.
            Como descreve Eric Erikson: “(…) o eu continua existindo,
            ainda que tenha sofrido dano e mesmo mudanças per-  CLÍNICA SEMPRE POLÍTICA
            manentes; o tu continua existindo, ainda que distante,
            e pode ser difícil se relacionar com ele; mas o nós deixa   Segundo Gilles Deleuze (1988), as questões com
            de existir.” (p. 73)                            as quais a psicanálise se defronta são inevitavelmen-
               Situações de grande violência e silenciamento social   te políticas. Tratam sempre do “quanto” e do “como”
            golpeiam diretamente os tecidos básicos da vida (social)   o desejo pode se produzir e se expressar diante das
            constituídos pelos vínculos que ligam mutuamente as   injunções de assujeitamento. Responder clinicamente
            pessoas causando um prejuízo na confiança no entorno   aos traumas de natureza diversa aos traumas sexuais
            social, na família, na comunidade, nas estruturas do   infantis desafia o clínico a elaborar conceitos úteis à
            governo, na lógica mais geral em que vivemos. A matriz   situação, em que a experiência traumática está deter-
            da constelação identificatória, base do sentimento de   minada por uma política de estado com um primeiro
            pertencimento à humanidade e da própria identidade, se   e explícito objetivo de fazer falar secundado por uma
            abala de forma profunda alterando seu funcionamento.  busca de silenciamento social.
               Mesmo não tendo um quadro sintomatológico único,   Nicolas Abraham & Maria Torok (1995), compro-
            nem uma síndrome unívoca, as sequelas psicológicas   metidos com a ideia de uma psicanálise com feições
            da tortura são sérias e permanentes, com tendência ao   humanas e atenta à aceitação do humano, em todo seu
            agravamento com o passar dos anos, e mais. Segundo   sofrimento, diziam que, se alguém lhes pedisse para
            Léo Eitinger (1995), a lista de danos é extensa:  resumir em uma única palavra o conjunto da temática
                    *a experiência traumática produz sequelas  ferencziana, esta seria catástrofe e seus sinônimos:
                 transgeracionais;                          traumas, acidentes, afecções, pathos.
                    *o índice de psicoses é cinco vezes mais eleva-  Para Sándor Ferenczi (1931), a reação imediata
                 do do que nas populações que não as sofreram;  ao trauma é uma “agonia psíquica e física que acar-
                    *a taxa de suicídio é de 16 a 23% mais elevada   reta uma dor tão incompreensível e insuportável” (p.
                 nas sociedades onde a tortura ocorreu a inserção  79) que o sujeito precisa distanciar-se de si mesmo,
                  social é muito difícil, as rupturas familiares são   vivendo num estado de suspensão. As descrições de
                 frequentes;                                Ferenczi (1934) em relação à comoção psíquica fazem
                    *a inserção social é muito difícil, as rupturas  referência ao terror, à catástrofe, à morte. O desprazer
                 familiares são frequentes;                 causado pelo excesso não pode ser superado, estando

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