Page 77 - ARTE!Brasileiros #59
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estimado reconhece e celebra conquistas e mudanças”, está preparada para receber um ex-preso. E é difícil...
logo, “parte da função dessas apresentações é que elas Quando a gente passa pelo sistema, as portas fecham,
confirmem, não apenas para o público, mas também principalmente as oportunidades de trabalho, fecham
para os participantes, a autenticidade de sua realização. mesmo. Ter antecedentes criminais é complicado, a
Essas experiências têm o potencial de estimular a sociedade não quer saber”. Esse é o depoimento de um
crença nascente na possibilidade de mudança e, assim, dos entrevistados, condenado a regime fechado, que
ajudar a construir novas identidades, redes sociais e pode ser complementado pela fala de um agente do
contatos nos quais essas novas identidades possam ser mesmo complexo penitenciário: “Então, o preso pode
inseridas. Ademais, essas performances podem ajudar ser ressocializado? Pode, mas, para que ele não volte ao
os indivíduos a imaginar diferentes futuros possíveis”. sistema prisional, ele tem que ter oportunidades lá fora”.
A partir disso é válido considerar – além das dimensões Eventualmente é possível se libertar desse estig-
simbólica (relacionada ao imaginário, às expressões ma? Como aponta Marina Dias, advogada e diretora
artísticas e práticas culturais) e cidadã (a cultura como executiva do Instituto de Defesa do Direito de Defesa
direito e importância em contextos de vulnerabilidade (Iddd): “O estigma fica, é muito difícil conseguir blo-
social) – a dimensão econômica da cultura, como gera- quear essas informações, então infelizmente é algo que
dora de crescimento, emprego e renda. acaba atormentando o egresso, muitas vezes, para o
resto da vida”. Mesmo com o processo de Reabilitação
o Que está por vir Criminal – que torna sigilosas ao âmbito civil as pas-
Uma vez libertos, é possível para os ex-detentos dar sagens criminais de quem já teve a pena cumprida –,
continuidade a esse estímulo – do saber e produzir ainda há ocorrências de acesso a essas informações
artístico e cultural – iniciado durante os projetos rea- por ente que não diz respeito ao âmbito judiciário. “É
lizados nos estabelecimentos prisionais? De acordo por isso que a gente precisa refletir sobre essa máquina
com o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), de triturar gente que é o sistema prisional”, completa.
em 2014, 75% dos encarcerados não tinham cursado Por fim, a discussão sobre política cultural destinada
o ensino médio (um indicador de baixa renda); caso à população privada de liberdade passa obrigatoria-
essas pessoas queiram dar continuidade aos estudos mente pela contrapartida social uma vez que esses
e ao contato com a arte tidos enquanto estavam deten- indivíduos tenham cumprido sua pena e retornado à
tos, é plausível supor que elas teriam que equilibrar liberdade, para que não lhes seja negada a possibilidade
estudo e trabalho, cuja conquista é ainda mais árdua de gozar também da dimensão econômica da cultu-
quando se carrega um estigma como dos egressos ra. Dessa forma, a reflexão mais imediata e tangível é
do sistema prisional. que se deve cobrar dos agentes do mundo da arte, se
No estudo O Desafio da Reintegração Social do não um envolvimento, pelo menos um interesse pelos
Preso: Uma Pesquisa em Estabelecimentos Prisionais, artistas que estão passando ou que já passaram pelo
divulgado pelo Ipea em 2015, foram entrevistados sistema prisional.
participantes da administração do sistema prisional, Em uma pesquisa feita pela reportagem, foi per-
da elaboração e execução de programas, projetos e guntado a 42 galerias de arte que participam das feiras
ações voltados à reintegração social, atores do sis- nacionais de maior porte se elas poderiam apontar
tema de justiça, além dos próprios apenados (cujas artistas egressos, representados pelas mesmas e/ou
identidades são respeitadas pelos pesquisadores, que que já haviam exposto ou vendido obras na galeria:
decidiram mantê-las em sigilo). 80% responderam não reconhecer artistas com tal
“Nenhum dos entrevistados desconsiderava este trajetória ou não ter conhecimento de tal histórico
estigma que envolve o cárcere, ao que atribuíam uma entre os artistas representados e/ou cujas obras já
das principais causas da reincidência criminal. Geral- haviam sido vendidas pela galeria, enquanto 20% não
mente a sociedade não oferecia espaço de êxito social forneceram resposta sobre a questão.
para o preso, considerando-o inapto para o convívio Embora não seja feita qualquer relação direta entre
em sociedade, tratando-o com preconceito e discri- essa ausência e as mazelas do estigma recaído sobre
minação, o que gerava revolta, pois consideravam os egressos, é oportuno questionar se não é passada
injustos os rótulos vindos de fora”, registra o estudo. a hora do mercado e das instituições começarem uma
“Eu estou bastante trilhado. Não quero mais cri- busca ativa por artistas egressos do sistema prisional
me, não quero mais nada. Só que a sociedade não ou facilitarem sua inclusão nos mesmos espaços.
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