Page 74 - ARTE!Brasileiros #59
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RepoRtagem SISTEMA PRISIONAL
reCÉm-saíDo Da Zona CrepusCular Da panDemia, De modo que “ainda que haja normativas internacio-
o “mundo da arte” retoma as atividades suspensas nais e nacionais sobre a garantia dos direitos culturais
nesse período incomum: novas feiras são arquitetadas, à população privada de liberdade, observa-se que
bienais com calendários antes transtornados enxergam a produção cultural no sistema prisional brasileiro
a luz do dia, finalmente, e as galerias ocupam outra ocorre de forma pontual, fragmentada e desarticulada
vez o negócio cara a cara. das políticas públicas de cultura em níveis nacional
Estagnado, porém, nessa movimentação ao novís- e estadual”. Assim, nem todos os estabelecimentos
simo normal, encontra-se o debate sobre a presença prisionais brasileiros contam com a execução dessas
da arte e da cultura no sistema prisional. Tampouco atividades, e estima-se que 90% dos 622.202 brasileiros
se discute sobre a política pública de cultura voltada sob custódia do Estado não tenham acesso às mesmas.
a essa população em âmbito nacional, mas talvez Para as unidades onde as atividades culturais
esse fato tenha menos relação com os interesses do acontecem, elas se concentram nas áreas de artesa-
“mundo da arte” e mais com a realidade de que tal nato, livro, leitura e bibliotecas, artes visuais (desenho,
política, na verdade, inexiste. pintura, fotografia), música (canto/coral, violão, flauta,
De todo modo, que papéis podem ter a arte e a bandas), teatro, dança, audiovisual (exibição de filmes)
cultura em um cenário liminarmente considerado e capoeira, ainda que outras expressões tenham sido
como um “Estado Inconstitucional de Coisas” pelo mencionadas como a comunicação (Rádio, Fanzines)
Supremo Tribunal Federal? Hip-Hop e a Arte Digital.
Em Aprendizagem, Reabilitação e Artes nas Prisões: No entanto, é preciso ressaltar um importante
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Um Estudo de Caso Escocês , Tett e colaboradores fator limitante que é a insuficiência de espaços físicos
relatam que pesquisas conduzidas na América do Norte, disponíveis e adequados para a sua realização nos
Nova Zelândia e no Reino Unido demonstram que a estabelecimentos prisionais, fazendo com que as
participação em projetos artísticos dentro das prisões ações de arte e cultura sejam realizadas em salas de
pode trazer significativas mudanças, como melhora no aula, pátios de sol, quadras esportivas e, em alguns
relacionamento entre detentos, com funcionários e com casos mais precários, nas próprias celas.
suas famílias; melhora da autoestima e autoconfiança; Tangendo o assunto, o pesquisador André Luzzi, do
desenvolvimento de habilidades sociais e de comuni- Laboratório de Gestão de Políticas Penais (LabGEPEn),
cação; e incentivo ao trabalho conjunto e auxílio mútuo. vinculado à UnB, chama à atenção que, “apesar do
No estudo, alguns dos participantes relataram orçamento da secretaria de administração peniten-
que sua integração aos projetos artísticos os ajudou ciária ser um dos maiores do estado de São Paulo, só
a resgatar memórias alegres do passado, sentimen- dedica 2% desse orçamento para reintegração social,
tos positivos que os pesquisadores relacionam a um todas as ações de inclusão das famílias, regularização
fortalecimento na confiança dos detentos para par- de documentos, atendimento psicossocial, locali-
ticipação em outras atividades de aprendizado. Esse zar e encaminhar pessoas para as vagas de trabalho,
conjunto de ações poderia ainda fornecer refúgios incluindo as questões culturais”.
dentro do sistema prisional e fortalecer a capacidade Segundo o pesquisador, “é flagrante que a priorida-
do indivíduo para lidar com um ambiente hostil, além de não é a preparação para a liberdade e as ações que
de, em certos cenários, auxiliar no preparo para o seu promovam direitos sociais no Art. 6º. da Constituição
retorno à vida em liberdade. Federal. O que nós precisamos também é ampliar a
Transportando esses resultados para o contexto destinação do recurso, ele existe e não é pouco”, indo
brasileiro, é possível verificar a implementação de ao encontro da fala de Claudia Aratangy, educadora,
programas semelhantes? O Relatório das atividades advogada e coordenadora do Núcleo de Oficinas,
culturais no sistema prisional, encomendado pelo Formações e Campanhas da oaB-SP: “Tudo o que diz
Departamento Penitenciário Nacional em conjunto respeito a melhorar as condições de presídios e da
com o Programa das Nações Unidas para o Desen- vida das pessoas encarceradas é colocado no final
volvimento (PnUd) em 2016, relata: “De forma geral da lista. Acho que o empecilho é, na verdade, uma
tais atividades acontecem por esforços pessoais dos vontade política”.
gestores da administração prisional e/ou de institui- Aratangy encara com otimismo, no entanto, as
ções parceiras da sociedade civil com ações de pouca recentes mudanças trazidas pela Resolução Nº. 391 do
escala e sujeitas a interrupções e descontinuidades”. CnJ, de 10 de maio de 2021. Com ela, outras atividades
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