Page 46 - ARTE!Brasileiros #59
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EXPOSIÇÃO SÃO PAULO
(celas) e de paredes vazadas como
os cobogós presentes no edifício.
Internado pela primeira vez em
1938, data em que dizia ter recebido
a revelação de que seria o filho de
Deus e a missão divina de recriar
todos os objetos presentes no mun-
do, Bispo constrói uma verdadeira
cosmogonia. “Tudo que ele organiza
e confecciona são a representação
do objeto, são sistemas represen-
tacionais do mundo”, explica Diana.
Como resume a curadora-pedago-
ga do mBraC, a narrativa que ele
constrói não é racional, moderna.
Ele estabelece nexos, sugere cone-
xões muitas vezes improváveis entre
coisas como religiosidade, pulsão
inconsciente e criação artística.
Mais do que apresentar respostas,
a exposição devolve ao espectador Retrato de Arthur Bispo do Rosario, 1982
uma série de perguntas essenciais:
Como definir o que é arte? O fazer
manual e o esforço de organização ao caráter pobre, um tanto tosco dessa obra, cuja sobrevivência
não são afinal um exercício de cura? dos mercados de secos e molha- durante sua vida e logo após a morte
Não seria a arte uma forma de cone- dos ou dos camelôs – fala sobre as deve-se à intervenção de um conjun-
xão com instâncias muito mais pro- condições difíceis enfrentadas nas to de pessoas sensíveis à força dessa
fundas (místicas ou inconscientes), instituições manicomiais. É profun- produção. Afinal, sua obra ainda não
que vão muito além de um circuito damente significativo que muitos dos estava inscrita no circuito da arte.
autorreferente? elementos que ele incorpora tenham Nos últimos anos seu acervo passou
sido obtidos por ele num processo por uma série de procedimentos de
materiais preCários permanente de acúmulo e doação. conservação, limpeza e catalogação,
É marcante a presença entre suas A própria linha, já desgastada, porém é inevitável notar os efeitos
construções de listas, coleções e que ele usa para bordar – com uma do tempo sobre as peças, sobretudo
catálogos de objetos similares, como habilidade provavelmente advinda no embotamento da cor, sensível
sandálias, nomes de mulheres ou da tradição do bordado na sergipa- em algumas peças icônicas como
mapas. Mas além dos traços esti- na Japaratuba, sua cidade natal, ou o Manto da Apresentação e Grande
lísticos recorrentes, pulsam nesses do desenvolvimento da técnica nos Veleiro, que tiveram participações
objetos elementos cotidianos da vida tempos em que serviu à Marinha – é de destaque em mostras como as FOTOS: HUGO DENIZART | PATRICIA ROUSSEAUX
desse homem negro, pobre, encar- obtida de velhos uniformes azulados bienais de São Paulo (2000 e 2012)
cerado ao longo de praticamente e roupas de cama, que desfia sem e Veneza (1995 e 2013).
toda a sua vida adulta. A precarie- parar. Tal fragilidade torna-se uma Esse caráter efêmero de sua
dade dos materiais – que remetem dificuldade a mais na preservação produção, um desafio museológico
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