Page 38 - ARTE!Brasileiros #55
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ARTIGO EXPOSIÇÃO SIDNEY AMARAL











                                    No contexto da realização da mostra “Viver até o fim o que
                                    me cabe! - Sidney Amaral: uma aproximação”, no Sesc Jundiaí,
                                    artista e curador Daniel Lima escreve uma correspondência
                                    direcionada ao artista paulistano, falecido em 2017

                                    por Daniel lima


            CARTA A SIDNEY AMARAL







                            nunCa te ConheCi, siDneY. Apesar de sermos dois artistas plásticos da mesma geração,
                            da mesma cidade, não nos encontramos em vida. Mais raro ainda se faz este desencontro
                            se pesarmos que somos dois artistas negros, uma exceção no mundo da arte contemporâ-
                            nea – mais ainda no início dos anos 2000, quando iniciamos nossas carreiras.
                               Logo nas minhas primeiras exposições, meu caminho bifurcou para um trajeto distante
                            das galerias de arte. Fui parte desta geração que optou por um encontro com a cidade,
                            com as contradições do espaço urbano. Um campo de batalha para criações poéticas num
                            embate de escala, linguagens e contextos político-sociais.
                               Enquanto você desenvolvia estes trabalhos poderosos que fazem parte da exposição
                            Viver até o fim o que me cabe! - Sidney Amaral: uma aproximação, com curadoria de Clau-
                            dinei Roberto da Silva, eu estava também na lida de trabalhos poéticos com soluções plás-
                            ticas e conceituais distintas. Mas os atravessamentos são os mesmos, Sidney…
                               Percebi estas transversalidades no meu encontro com sua obra quando estava reali-
                            zando a exposição Agora Somos Todxs Negrxs?, no Galpão Videobrasil em 2018. Com a
                            ajuda do Claudinei Roberto - que tinha sido colega na USP e que certamente pode compac-
                            tuar de ser negro nestes espaços de exceção -, pude encontrar suas obras em seu habitat
                            natural: o ateliê onde deitavam cobras douradas de dentes de garfo; barbies sem cabeça
                            em sólido bronze; colheres armadilhas de comer. Os desenhos e pinturas de um virtuosis-
                            mo da técnica em encontro com este duplo da identidade: a contradição da negritude.
                               Ser parte de uma imensa minoria na arte contemporânea e maioria na população nos dá
                            esta certeza da importância de inscrever essa perspectiva afro-brasileira tão invisibilizada.
                            Ao mesmo tempo, é certa a armadilha identitária que temos que transcender. Um duplo
                            desafio de trazer o contexto singular que nos forjou, mas também, de atravessar os limites
                            do que se considera como denúncia de mazelas sociais do nosso mundo. Uma contradição
                            a ser elaborada em dois sentidos: em relação à armadilha identitária e outro, conexo à iden-
                            tidade, na articulação da denúncia social e do anúncio de outras perspectivas futuras.
                               As armadilhas são semelhantes à medida que colocam o problema de como fugir dos
                            quadros criados para um fazer político poético. Em outras palavras, Sidney, tivemos à fren-
                            te o desafio de falar a partir do lugar de indivíduos negros - e nesta operação do olhar para
                            si mesmo é quase impossível ignorar as violências que nos atravessam - mas, ao mesmo
                            tempo, desvestir-se da roupa identitária negra pois foram criadas para nos amarrar e tolher
                            potências de vida. Como coloca Achille Mbembe em Crítica da Razão Negra:

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