Page 40 - ARTE!Brasileiros #55
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ARTIGO EXPOSIÇÃO SIDNEY AMARAL
“Não persistirá ele próprio a se reconhecer apenas pela e na diferença? Não
estará convencido de ser habitado por um duplo, uma entidade estrangeira que
o impede de se conhecer a si mesmo? Não vivenciará seu mundo como um defi-
nido pela perda e pela cisão e não nutrirá o sonho do regresso a uma identidade
consigo mesmo, que regride ao modo da essencialidade pura e, por isso mesmo,
muitas vezes, do que lhe é dessemelhante?”
Este duplo na sua obra, Sidney, surge em ataque a si mesmo. Afirmar-se negro em
imagem, plenitude, luta, dignidade, num sentido reverso à animalização histórica do negro
no mundo colonizado. Simultaneamente golpeado pela certeza que algo nos enterra numa
retórica de morte:
“A ameaça assombrosa, para milhões de pessoas apanhadas nas redes da domi-
nação racial, de verem seus corpos e pensamentos operados a partir de fora e
de se verem transformadas em espectadores de algo que, ao mesmo tempo, era
e não era a sua própria existência” (MBEMBE).
Sidney, quando fui à África pude entender que “negro” foi criado aqui nas Américas
para nos definir, dominar e diminuir. Um termo que, como coloquei no título-pergunta pro-
vocação da nossa exposição Agora somos todxs negrxs?, foi criado para “significar exclu-
são, embrutecimento e degradação, ou seja, um limite sempre conjurado e abominado”,
escreve Mbembe. Mas que, pela necessidade de sobrevivência, foi ressignificado por um
caminho de luta da mesma história de violência e resistência. Ser negrx passou a significar
que somos irmãos e irmãs, filhos e filhas da diáspora afro-atlântica. E desde então este
ser negro “tornou-se o símbolo de um desejo consciente de vida, força pujante, flutuante
e plástica, plenamente engajada no ato de criação e até mesmo no ato de viver em vários
tempos e várias histórias simultaneamente”.
Acredito que este duplo que reencenamos juntos com tantos outros nesta geração
redefine significados de imagens consolidadas e consolidadoras de estereótipos. O meni-
no negro com a camiseta máscara; o anjo soldado; a mulher que sorri com coroa de flores…
Maneiras de recolocar imagens no mundo – e, desta forma, nos recolocamos.
Estes movimentos são conscientes da limitação em “simplesmente estabelecer novos
símbolos de identidade, novas ‘imagens positivas’ que alimentam uma ‘política de identi-
dade’ não reflexiva”, como escreve Homi Bhabha em O Local da Cultura. Por desgaste e
provocação desta dupla identidade, construímos um labirinto que leva, afinal, a identidade
multiplex: não fluidas, amorfas ou escorregantes, mas antes sólidas em muitos lados defi-
nidos pela negação, pelo o que não somos.
Assim, os temas, seja da escravidão como em Gargalheira ou quem falará por nós?,
seja da religião católica colonial em Demiurgo ou O Pão Nosso, mas também da história
recente em Diálogos/Encontro retornam como este “presente disjuntivo”, um presente
quebrado em interpretações conflitantes, contraditórias. Este deslocamento incomoda
muitos porque desconstrói mundos de crenças estáveis. Somente o deslocamento racial,
a figura negra no contexto canônico da arte, já desloca o mundo à sua volta.
Estas imagens mito, imagens memória, imagens tempo que invadem e colonizam sub-
jetividades, Sidney, estão sendo reinscritas por nós não como símbolos heróicos de uma
política de identidade. São reinscritas na “própria textualidade do presente, que determina
tanto a identificação com a modernidade quanto o questionamento desta: o que é o ‘nós’
que define a prerrogativa do meu presente?”, aponta Bhabha.
Certo que este “nós” da nação brasileira nunca nos incluiu. E, neste estágio do capi-
talismo, muitos começam a perceber que também não os inclui mais. O estágio atual de
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