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ARTIGO A ARTE E O CAPITAL













            estrutural do empreendimento.   bom para o democrático”, diria   modo como o trabalho circula,
            Mais uma vez, a equação é       Hal Foster no seu Complexo Arte-  no modo como se desloca e
            simples: a presença da prática   Arquitetura (2013).            habita o mundo. Não existe obra
            artística é recurso publicitário    O início desse casamento    desencarnada. Um exemplo claro
            para valorizar e justificar o   é longínquo, mas gostaria de    disso é a relação entre o mercado
            negócio, “imunizá-lo”, quiçá.   chamar atenção para o fato de   e as iniciativas independentes
                Eu costumava achar que      que a tal “autonomia” da arte,   “sem fins lucrativos”, que acabam
            havia um abismo entre acreditar   que nos fez crer que a prática   por agregar valor ao artista ou
            que a arte pode complexificar   artística está desatrelada de   iniciativa por serem reconhecidas
            nossos modos de estar no mundo   funções morais, científicas e   por seu propósito crítico e
            e simplesmente reduzi-la a um   funcionais, hoje é acionada com   contestatório ao sistema (no
            problema de gosto, mas esses    outras intencionalidades. Afinal,   caso do Pacaembu, a presença
            discursos se encontram mais     o trabalho “tem autonomia” em   de trabalhos que estavam
            do que se imagina. Foi Pierre   relação ao projeto, ao artista cabe   indiretamente criticando o
            Bourdieu quem identificou que,   fazer a sua arte, ao curador cabe   projeto é evidência disso). No
            segundo a perspectiva das       fazer a sua exposição, e nada mais.  entrelaçamento entre produção
            classes dominantes, a maneira   Tal perspectiva autônoma pôs    artística e infraestrutura
           “legítima” de compreender        o trabalho cultural na chave da   neoliberal, é preciso reconhecer
            uma obra é entendê-la como      transcendência, cuja premissa é a   cada vez mais curadores,
            fim em si mesma. Ela não        de que a criação se dá para além   instituições e empreendimentos
            deve servir a fins políticos e   das condições sociais e políticas,   como peças fundamentais na
            econômicos, mas apenas ao       então só resta aos agentes      construção de sentidos que uma
            próprio problema da linguagem.   envolvidos lavarem muito bem as   obra institui.
            Porém, tal maneira “legítima”,   mãos e seguirem para a próxima    Voltemos à Cidade Matarazzo:
            como esmiuçou o sociólogo,      aventura. A responsabilidade é   o negócio é gringo, mas os
            tem como pressupostos (de       uma batata quente.              “valores” são brasileiros. O
            classe) a formação de repertório,   Mas as noções de autonomia   hotel, com assinatura de Jean
            herança familiar e posição sócio-  e utilidade são mutuamente   Nouvel (sua primeira obra na
            econômica, embora os iniciados   intercambiáveis e nada estáveis.   América Latina), é composto por
            se esforcem para que soe como   Na caracterização acima, seria   uma “Torre Mata Atlântica” cuja
            dom natural e sensibilidade nata.   possível invertê-las, a depender   estrutura é formada por uma série
            Por isso Allard “ama” o processo   do que esteja sendo enfatizado.   de planos verdes frondosos e
            criativo, porque parece acessar   Um trabalho supostamente      terraços com árvores locais que
            algo mágico e divino quando vê   comprometido em relação a      devem simular uma invasão da
            alguém trabalhando em “como     determinados temas e questões   mata sobre a arquitetura, uma
                                                                                                      [6]
            agregar as notas”. E por isso seus   pode ser apropriado de modo   espécie de triunfo da natureza . O
            empreendimentos também estão    desinteressado. Na via oposta,   projeto também se compromete
            permeados de arte – é a aura que   um trabalho supostamente     a usar apenas materiais e
            os torna legítimos e admiráveis.   desinteressado pode ser      fornecedores nacionais e
            Acontece que, aqui, a arte está   bastante útil na construção de   não  economizar no plantio de
            sim a serviço de fins políticos e   determinada narrativa social,   árvores comuns à Mata Atlântica
            econômicos, mas soa como se     pode ser instrumentalizado como   ameaçada no local. Além disso,
            não estivesse. “O espetacular é   força simbólica. Os sentidos   como é característica do arquiteto,
            um substituto suficientemente   são construídos sobretudo no    soluções high tech serão

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