Page 64 - ARTE!Brasileiros #54
P. 64

ARTIGO A ARTE E O CAPITAL













            de todas essas porcarias, somos   de precariedade é a forma de   redenção, mas ainda vale investir
            o território do “sensível”, do   governar pessoas no século xxi.   em alguma sobrevida que não se
           “pensamento crítico”, da “força   A instabilidade produzida pela   reduza a isso.
            criativa” etc. Balela neoliberal.  precarização nos impede inclusive   Antes de tudo, podemos
              Tudo isso, é claro, nos coloca   de protestar e exigir direitos.   desconfiar cada vez mais de
            numa posição difícil. A não ser que  Tememos perder laços de trabalho   discursos e propósitos pautados
            você seja herdeiro ou tenha sido   ao endereçar críticas, tememos   na transcendência da arte, da
            agraciado com um sobrenome      fazer reclamações porque elas   experiência e do valor. Junto a
            importante, pagar as contas     podem nos fechar portas no      isso, podemos compreender que
            te faz ter que jogar com esses   futuro. A expressão “rabo preso”   assumir uma postura política
            esquemas. Daí que muitas vezes   vem muito bem a calhar. Ademais,   é agir diante de uma situação
            utilizamos o argumento de que   o trabalho precarizado isola e   concreta, que vai além de rótulos
            vamos “ruir o sistema por dentro”   individualiza o trabalhador, além   discursivos, e isso significa
            para aceitar convites de iniciativas   de dificultar os recursos de   analisar deliberadamente com
            com que não concordamos no      organização coletiva. Não apenas   quem nos associamos e sob
            todo. Às vezes porque precisamos   porque acentua a concorrência,   que condições. Além disso, se
            do dinheiro, às vezes porque    mas também porque fragmenta     não nos resta alternativas de
            desejamos algum prestígio e     radicalmente as etapas de       trabalho mais saudáveis, talvez
            visibilidade, ou simplesmente   trabalho, suprime convivências   possamos negociar melhor os
            porque é através delas que vai   e reduz encontros. Por tudo    nossos aceites, de forma mais
            ser possível realizar qualquer   isso, a precariedade é uma     ativa e propositiva. Em todo caso,
            coisa que seja. Na prática, o “ruir   governabilidade, e isso também é   celebrar a “diversidade brasileira”
            por dentro” tem tornado essas   lição da arte.                  não basta, cumprir as normas
            estruturas ainda mais fortalecidas   Nós, trabalhadores do meio   da representatividade tampouco.
            e sofisticadas com os nossos    cultural, somos todos cúmplices   Precisaremos de articulação e
            selos politicamente engajados. E   dessa equação, em maior ou   imaginação coletiva e, não custa
            não é raro nos sentirmos ridículos.  menor grau, e não estou isenta   lembrar, já percebemos que isso
               Isabell Lorey (2015) tem     disso. Me pergunto, porém, se   não se resolverá nos feeds do
            definido a precariedade como    estamos realmente cientes       instagram.
            forma de regulação do nosso     de como isso integra o nosso
            tempo histórico. Mais do que    trabalho diário. Não haverá     *Texto originalmente publicado na revista
            isso: a produção de um regime   vida imune ao mercado e nem     A Palavra Solta, em janeiro de 2021




            [1]    https://www1.folha.uol.com.br/  [5]  https://www.forbes.com.br/principal/2020/02/  madeiras brasileiras lindíssimas. Todos os
             ilustrada/2020/12/estadio-do-pacaembu-e-  a-potencia-de-criacao-da-cidade-matarazzo/  quartos do hotel serão equipados com um
             invadido-por-obras-de-arte-as-vesperas-de-  [6]  “Não estamos falando de pequenas   kit-mural que permite ao hóspede expor ou
             reforma.shtml                   samambaias num jardim vertical, mas sim   não obras de arte brasileiras através de um
            [2]    O site da exposição ainda pode ser visitado   de árvores enormes, de 15 a 18 metros, que   jogo de painéis em lambril de madeira. Há
             através de: http://www.feitoporbrasileiros.  dialogam com a altura da torre. É a ascensão   algumas vitrines com estatuetas e outras com
             com.br/                         por meio da natureza.” - Essas são as aspas   arte plumária. É a realização do que associo à
                                             de Jean Nouvel no site do empreendimento.  imagem e ao objeto.”
            [3]  http://www.canalcontemporaneo.art.br/  [7]  https://www.forbes.com.br/principal/2020/02/  [9]      https://www.revistaapalavrasolta.com/post/
             brasa/archives/week_2014_09_21.html  a-potencia-de-criacao-da-cidade-matarazzo/  hito-steyerl-na-tradu%C3%A7%C3%A3o-de-
            [4]  https://vejasp.abril.com.br/cidades/anish-  [8]  No site do projeto, o designer Philippe Starck   julia-de-souza?fbclid=IwAR3sgQmM0cvXwd
             kapoor-casa-bradesco-da-criatividade-  explica suas escolhas: “Utilizamos pedras   rxCdnMss5ssOlxy915egj6nAxsCxgd95CiACq3
             cidade-matarazzo/               brasileiras extraordinárias assim como   UPQhyg4

            64
   59   60   61   62   63   64   65   66   67   68   69