Page 85 - ARTE!Brasileiros #53
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e moldam a sociedade brasileira, bem como todos os      “[...] A língua é a mais alta manifestação da
             países do continente americano criados a partir da       inteligência de um povo, é a sua criação
            “mão-de-obra negra” escravizada, ou sobre por que o       mais viva e original; e, portanto, a emanci-
             Haiti, o único país das Américas a declarar indepen-     pação política do país requer como comple-
             dência e abolir a escravidão ao mesmo tempo, sofreu      mento e consequência a sua emancipação
             enormes boicotes e foi destruído sistematicamente        idiomática.”
             ao longo da história.
                                                                      Lima Barreto, Triste fim de
                   “O que é meu                                       Policarpo Quaresma (1915, p. 26)
                    um homem só, prisioneiro de branco
                    um homem só, que desafia os gritos brancos   Não é por acaso que Pele Negra, Máscaras Bran-
                    da morte branca                            cas começa com um poema/introdução, no qual
                    (TOUSSAINT, TOUSSAINT LOUVERTURE)”.        conceitos, poéticas, manifestos e desejos se
                                                               entrecortam. Não é à toa que o primeiro capítulo
                    Aimé Césarie, Diário de um Retorno         seja intitulado “Negro e a Linguagem” e que a
                    ao País Natal (1939, p. 46)                sua primeira frase seja: “Conferimos importância
                                                               fundamental ao fenômeno da linguagem”. A luta
             Quero deixar “claro” que o meu maior desafio ao ler   é, sobretudo, sobreviver diante da linguagem que
             Fanon foi compreender o que significa uma identidade   denigre, seja para existir como sujeito (agente
             não existir na sua própria língua, seja ela escrita ou   no mundo dos vivos), seja como representação
             falada. Essa mesma língua na qual escrevo mantém   simbólica.
             praticamente intacta as relações de poder e violên-  A seguir, algumas das palavras fanonianas que
             cia que a constituíram. O português preserva a sua   atravessaram os tempos:
             herança colonial e patriarcal branca no centro de sua
             dimensão política. As palavras que usamos definem o      “Falar é ser capaz de empregar determi-
             lugar de uma identidade e para nós, negros e negras      nada sintaxe, é se apossar da morfologia
             e todas as humanidades subalternas e racializadas,       de uma outra língua, mas é acima de tudo
             a primeira batalha para existir é no campo da lingua-    assumir uma cultura, suportar o peso de
             gem. Como já disse o Racionais mC’s: “Essa porra é       uma civilização.”
             um campo minado”.
                É forte a percepção de que tenho que existir         “[...] O problema que enfrentamos neste
             imerso em uma língua que me aparta, me “denigre”         capítulo é o seguinte: tão mais branco
             e me “judia”, em um idioma no qual o universal é         será o negro antilhano, quer dizer, tão
             masculino – aliás, o próprio Fanon foi bastante          mais próximo estará do homem verdadeiro,
             criticado pela universalização do masculino como         quanto mais tiver incorporado a língua
             o sujeito do pensamento humano. Todos esses              francesa. Não ignoramos que essa é uma
             mecanismos nos afastam do pleno reconhecimento           das atitudes do homem diante do Ser. Um
             das humanidades racializadas, as quais foram e           homem que possui a linguagem possui,
             são transformadas pela hierarquia racial do projeto      por conseguinte, o mundo expresso por
             colonial em humanidades subalternas, sem agência         essa linguagem e implicado por ela. Pode-
             plena no mundo dos vivos.                               -se ver aonde queremos chegar: existe
                Mas se a presença não está inscrita na língua, o      no domínio da linguagem uma potência
             extermínio está. O genocídio negro e indígena no Brasil   extraordinária.”
             é uma realidade.
                Assim como eu nesse artigo, Fanon escreve na   Por fim, deixo aqui o convite para que mergulhem
             língua que o aparta, que tenta embranquecê-lo e que,   nessa jornada sem volta que é ler e reler Pele Negra,
             em última análise, o aniquila. E isso, o nosso querido   Máscaras Brancas e suportem o atravessamento da
             Lima Barreto já sabia:                            força da linguagem.

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