Page 87 - ARTE!Brasileiros #53
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forte – e muitas vezes angustiante – dúvida sobre os Redes da Maré, e com os coordenadores do mlB. Mas
impasses do momento atual e o que assistiremos no também se revelam a partir de reflexões filosóficas
futuro próximo. Ao longo dos últimos nove meses (não de amplo alcance, que na maioria das vezes retomam
por acaso tempo equivalente ao de uma gestação), instrumentais que já vinham sendo elaborados pelos
muito foi produzido e começa aos poucos a chegar às pensadores, como demonstra Pedro Duarte numa bela
nossas mãos. síntese sobre os principais lances dados pelos filósofos
Um desses conjuntos, que traz uma ampla gama nesses tempos turvos.
de análises desenvolvidas por pessoas das mais dife- No campo mais específico da cultura e da arte, uma
rentes áreas do conhecimento, é No Tremor do Mundo, questão parece ricochetear em praticamente todos os
coletânea de ensaios e entrevistas publicadas recen- comentários, interpretações e questionamentos aven-
temente pela editora Cobogó. São ao todo 25 autores tados: como pensar a questão da experiência da troca,
que procuram destrinchar não apenas os efeitos da do intercâmbio – porque não do contágio – da prática
pandemia sobre o mundo, os indivíduos e a sociedade, artística se o contato entre as pessoas foi limitado? A
mas também entender de que forma essa situação própria criação artística parece oferecer essa ponte,
excepcional ajuda a iluminar, transformar ou acentuar propor uma aproximação, poética ou reflexiva, afetiva
a crise atual, seja ela política, econômica, ambiental ou ou simbólica, como podemos perceber em várias ações
humana. Os textos oscilam entre um otimismo quase que vêm sendo compartilhadas ao longo desse período
redentor e um pessimismo ácido em relação aos desafios de “isolamento”. É o caso, por exemplo, do diário que a
gigantescos a serem enfrentados para, nas palavras escritora Noemi Jaffe – uma das autoras convidadas de
de Ailton Krenak (um dos vários entrevistados pelos No Tremor do Mundo – se propôs a escrever como um
organizadores da publicação, Luisa Duarte e Victor “ato de elaboração em meio a um grande luto”.
Gorgulho), “adiar o fim do mundo”. Rosana Palazyan, cuja obra é marcada por uma
Nada mais terrível do que uma doença – até o delicadeza cortante e pela capacidade de combinar o
momento incontrolável – que nos lembra que “o amanhã universal e o particular (sua instalação Uma História
pode simplesmente não existir”, como alerta Sidarta que eu nunca Esqueci ajudou a Armênia a conquistar o
Ribeiro. Ou, nas palavras de Guilherme Wisnik, um Leão de Ouro de Melhor Pavilhão Nacional, na 56 Bienal
a
vírus que revela “um mundo dominado por sentimen- de Veneza), também mergulhou nesse período de qua-
tos crescentes de paranoia e angústia”. A variedade rentena num rico processo de elaboração simbólica do
de respostas ensaiadas pelos diferentes autores não drama coletivo vivenciado por todo o globo nesse 2020,
esconde uma certeza em comum: que o momento e que em países como o Brasil – submetidos a governos
atual funciona como uma espécie de alerta, revela a de índole totalitária e negacionista e marcados por uma
necessidade de uma mudança radical. “O Covid expôs profunda desigualdade – é vivido de forma ainda mais
a extensão e a profundidade da ruptura necessária”, intensa. Desde abril ela vem desenvolvendo a série
sintetiza Heloisa Starling. Aqui é mais do que o Vírus, um conjunto de pequenas
O enfrentamento pode se dar pela ação concreta, máscaras que cabem nas palmas das mãos e foram rea-
real, de movimentos como o das Marés ou do Movi- lizadas a partir do único retalho de que dispunha (desde
mento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (mlB), cujas o início da pandemia resolveu instalar-se na casa da
estratégias de combate ganham visibilidade nas entre- mãe, ficando longe de seu ateliê). Sobre essas delicadas
vistas feitas com Eliana Souza Silva, fundadora da ong miniaturas, Rosana borda frases, palavras, desenhos
das mais diferentes origens (apropriadas de conversas,
pensamentos, reportagens...) utilizando como linha seus
próprios fios de cabelo, material que utiliza desde um
FOTO: ROSANA PALAZYAN Na página ao lado, Aqui é mais do que o “São como as palavras e pensamentos que saem das
trabalho com meninos de rua desenvolvido em 1998.
Vírus, de Rosana Palazyan, uma série de
bocas que passaram a ficar escondidas. Espaço para
pequenas máscaras nas quais a artista
nossas falas, relacionando os acontecimentos diários
borda frases com os próprios fios de cabelo
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