Page 53 - ARTE!Brasileiros #49

material; Obscura Luz (1982), em que uma sombra essa história truculenta, isso é uma questão que persiste
forma o desenho de uma lâmpada; na série de notas ou ao longo do tempo. Quando fiz esse trabalho, em 1987,
moedas de zero, que questionam a relação entre valor pensando nos Sete Povos das Missões do século 17, eu
real e simbólico e explicitam que o valor estampado no estava falando genericamente sobre esse processo de
dinheiro é uma abstração; ou ainda em obras como A aniquilamento. Mas isso acaba caindo como uma luva
Menor Distância entre Dois Pontos é uma Curva (1976) para a situação atual”, afirma o artista, sem perder, no
e nos trabalhos da série Arte Física (1969). entanto, a esperança de que ainda possa haver justiça.
A série Blindhotland (“terraquentecega” em tradução “Mas cedo ou tarde a responsabilidade por esses crimes
livre), por sua vez, com três trabalhos na mostra, confunde vai cair no colo dos autores.”
o visitante quando sua visão é “traída” pela aparência O sentimento de contemporaneidade que percorre a
dos objetos. Na célebre Eureka/Blindhotland (1970-1975), exposição, segundo Rebouças, é consequência não
por exemplo, dezenas de bolas de mesmo tamanho, cor e só da escolha de obras que dialogam com “questões
forma – espalhadas para serem manipuladas pelo público absolutamente não solucionadas”, mas é “resultado de
– apresentam pesos sensivelmente diferentes; em Blindho- uma produção muito complexa e contundente, dessa
tland/Gueto, de outro modo, bolas de tamanhos diferentes capacidade do Cildo de agenciar os afetos, mais do
apresentam o mesmo peso, outra vez criando uma espécie que responder a eventos específicos. Ele está respon-
de confusão cognitiva que desafia os sentidos. Assim dendo a um sentimento que se compartilhou em outro
como elas, várias outras obras da mostra convidam o momento e que se compartilha ainda hoje”. E isso não
visitante à interação, à uma vivência que vem por meio se refere apenas à história brasileira. No conjunto de
da participação, dialogando com o que o Cildo chama de obras que lidam com a estrutura colonial estão também
“caráter de sedução” das artes visuais. Olvido (1987-1989), em que milhares de velas e ossos
“Eu acho que tem duas características que as artes de bois cercam uma tenda indígena – ao estilo de povos
plásticas deveriam preservar, dois aspectos que não norte-americanos – forrada de cédulas de dinheiro, e
deveriam nunca ser negligenciados. Primeiro é o caráter Amérikkka (1991/2013). Com referência já no título à
de sedução. Acho que de certa maneira a arte concei- organização terrorista e supremacista de extrema-
tual, num primeiro momento, tentou limpar isso, tornar -direita Ku Klux Klan, a instalação cria um ambiente
asséptico, e você perde a chance de lidar com o teor tenso ao colocar o público sobre ovos de madeira,
de sedução que um trabalho pode ter”, diz o artista. no chão, e sob a mira de projéteis de armas de fogo
“E a outra coisa é que as artes plásticas são uma ativi- presas ao teto.
dade que permite para cada ideia nova você começar Assim como Amérikka, a mostra apresenta uma série
do zero. Você quer fazer um filme, pode ter mil ideias de outros trabalhos nunca expostos no Brasil, ou que
e caminhos, mas aquilo sempre acaba no fotograma. apenas foram apresentados no país há muito tempo.
Em artes plásticas não existe isso, você pode pegar Segundo Rebouças, ao menos duas gerações não tive-
qualquer coisa, de qualquer natureza, com qualquer ram contato com um recorte amplo da obra de Cildo,
material, usando qualquer procedimento, e você chega já que a última grande mostra do artista no Brasil per-
ao trabalho final”, afirma, explicando também que correu o MAM do Rio e de São Paulo em 2000. Pouco
nunca teve um método definido de produção. afeito a montar exposições – ao menos atualmente –,
Cildo diz que um dos motivos que o atraiu na proposta
VEIA POÉTICA E POLÍTICA foi a localização da mostra no Sesc Pompeia, onde há
Tanto a sedução quanto a variedade de materiais e lin- grande circulação de pessoas de todas as classes e
guagens estão presentes também nas obras que tratam idades e entrada gratuita. “Essa característica do Sesc,
mais explicitamente de questões sociopolíticas e eco- que é um profundo respeito e interação com o entorno,
nômicas, e que lidam com memórias que se repetem na com a comunidade, traz também um público que não é
história brasileira. Em Missão/Missões (Como Construir aquele especializado, específico das artes plásticas. E
Catedrais), milhares de moedas espalhadas pelo chão se essa expansão me interessava”, ressalta.
conectam, por meio de uma coluna de hóstias empilhadas,
aos ossos pendurados no teto, criando uma “anticatedral” PARALELOS COM A DITADURA
que denuncia as violências da exploração colonial e sua Não é apenas entre os dias atuais e a história colonial
sede por acumulação financeira. “O extermínio indígena, que Entrevendo traça paralelos. Artista de forte atuação

53

Book_ARTEBrasileiros_49.indb 53 14/11/19 00:57