Page 36 - ARTE!Brasileiros #48
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REPORTAGEM GRADA KILOMBA E DJAMILA RIBEIRO
usando aqui também sua própria narração. No catálogo
da mostra, Djamila Ribeiro aponta como, no Brasil, Cida
Bento já utilizava a mesma ideia com o termo “pacto
narcísico de branquitude”. Segundo ela, esse conceito
defendia que “as pessoas brancas consentem um pacto
para se premiarem, se protegerem, não importando as
circunstâncias e, com isso, manterem o estado de coisas
injusto perante pessoas negros”.
Nada mais adequado, portanto, que ver trabalhos assim
no segundo andar da Pinacoteca, onde está o acervo da
instituição, para que eles funcionem como um agente
disruptivo na narrativa oficial da história da arte que tanto
deixou invisível as minorias, que no Brasil são as maiorias.
Os trabalhos de Grada Kilomba ocupam exatamente
GRADA KILOMBA E DJAMILA RIBEIRO EM CONVERSA NA ABERTURA DA EXPOSIÇÃO
as salas nos cantos do acervo, como a permitir que,
entre um deslocamento e outro, seja possível se refletir
retrata como índia em uma de suas séries, e acho que sobre os traumas do processo colonizador. Em Table of
de fato é preciso se questionar estratégias de repre- Goods, por exemplo, ela cria uma escultura com cacau,
sentação como esta. café e açúcar, justamente os produtos produzidos pelos
A própria Kilomba reconhece que “isso funcionou até escravos no Brasil. Encimada por velas, essa escultura
pouco tempo atrás porque muitas artistas mulheres torna-se uma espécie de memorial sobre o sacrifício de
negras não tinham acesso a essas plataformas, mas milhões de negras e negros.
em 2019 é absolutamente impossível dar credibilidade Já em O dicionário, ela cria um ambiente onde cinco
a esses trabalhos. É importante que não haja uma palavras são descritas em seus significados – negação,
reencenação do colonialismo. Quando falamos em nome culpa, vergonha, reconhecimento e reparação – estabe-
do outro estamos reproduzindo a essência do discurso lecendo uma espécie de percurso de como a opressão
colonial que é usar o outro como objeto pelo qual eu pode passar por distintas fases até ser eliminada.
falo como sujeito”. O que não deixa de ser notável nesse pequeno conjunto
Com sua voz pausada e profunda, Kilomba usa as pala- de obras é a utilização do corpo de forma performática,
vras de forma precisa, como nas narrações de duas de particularmente nos vídeos, nos quais a própria Kilomba
suas projeções em vídeo no segundo andar da Pinaco- trabalha com um grupo de atores que atuam nos limites
teca: Ilusões Vol. I Narciso e Eco e Ilusões Vol. II Édipo. entre dança e teatro.
Nelas, a artista reconta os mitos gregos de maneira Essa estratégia é coerente com seu posicionamento em
performativa para em seguida desconstruí-los a partir defesa da descolonização. Como ela afirma: “O momento
de questões em torno da raça. Enquanto freudianos chave da descolonização é nos posicionarmos na nossa
entendem a morte do pai como um conflito de família, subjetividade para sempre dizer de que lugar, de que
Kilomba aponta como “esta fixação na família (branca) tempo e de que espaço estou a escrever, quem sou eu e
ignora as dimensões históricas e políticas deste conflito”, que biografia minha é esta que me leva a escrever isso
de acordo com sua própria narração. e a essa produção do conhecimento. Eu estou refletida
Ela segue ainda de forma certeira: “no seio de uma na minha obra e esse é o momento chave da descolo-
relação colonial, por mais que as pessoas marginali- nização do conhecimento e das artes.”
zadas obedeçam à lei, nós raramente nos tornamos a O debate na Pinacoteca está acessível em: https://www.
autoridade legal, em vez disso, tornamo-nos os que são youtube.com/watch?v=ovSKrDLs9Ro.
punidos e assassinados pela própria lei”, como a retratar Além de participar da abertura de sua exposição, Kilomba
de forma exemplar a discriminação cotidiana no Brasil. esteve em São Paulo para lançar o livro “Memórias da
Já em Ilusões II, a artista trata de quão “narcisista é Plantação. Episódios de racismo cotidiano”, sua tese de
esta sociedade branca patriarcal na qual todos nós vive- doutorado defendida há 10 anos na Alemanha, um texto
mos que é fixada em si própria e na reprodução da sua que questiona não só a violência social na descriminação,
própria imagem, tornando todos os outros invisíveis”, como o próprio formato acadêmico.
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