Page 31 - ARTE!Brasileiros #48
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acervos e suas práticas para poder trabalhar no Brasil. humana foi fragilizada em termos das condições políticas
Sei que não é fácil construir uma instituição no Brasil, e econômicas, das marcas do colonialismo. Em meio a
mas tampouco é em Portugal, meu país. O museu que tudo isso, o Brasil constrói uma cultura inacreditável. E
trabalhei em Portugal foi o primeiro museu de arte me interessa particularmente a forma como a cultura
contemporânea do país e foi criado só no final do século brasileira subverte a distinção entre cultura erudita e
20. Apesar de aqui os museus terem começado antes, popular. Isso acontece na música, nas artes visuais, no
sei que a institucionalidade não é fácil. cinema. Isso sempre me fascinou muito.
Por tudo isso, acho que o instituto é uma das instituições Quando comecei a trabalhar com arte isso se tornou
mais possíveis para se relacionar com a memória e o muito claro, porque não havia textos brasileiros lidos
presente, porque a memória não pode ser indistinta do em Portugal, seja de Mário Pedrosa, seja de Ferreira
presente, como o presente não pode ser indistinto da Gullar ou mesmo de Hélio Oiticica, nenhum deles era
memória. Isso foi o que me levou ao Reina Sofia, pois conhecido. Quando descobri que o MoMA pensava
me interessava muito como o Manolo [Manuel Borja- publicar os textos do Mário Pedrosa, disse para eles
-Villel] constrói um ponto de vista sobre a história a que quando esses textos fossem traduzidos para inglês,
partir da história da arte e a história da arte a partir da os cânones da História da Arte iriam mudar. E de fato,
história, o que faz o Guernica não ser apenas uma obra- eles traduziram e passaram a dar importância a ele.
prima da história da arte, mas também um documento Precisam ainda descobrir como Walter Zanini constrói
importante de um momento de conflito que revela uma um conceito de museu, que é outro capítulo na história
história a partir do ponto de vista dos vencidos e não dos museus no século 20.
dos vencedores, que é quem em geral condiciona as Há tanta coisa por aqui que abre caminhos, que critica
narrativas históricas nos museus e nas instituições. os caminhos dominantes nos centros clássicos da cons-
Então, trabalhar com os acervos do Moreira Salles trução da modernidade, das vanguardas, da geopolítica
é poder trabalhar com o melhor de uma cultura que do mundo, que fazem a minha presença aqui um grande
sempre me fascinou, e na língua que eu falo. desafio e uma grande possibilidade de trabalho. Por isso
O que também me interessou no convite para meu tra- tudo, confesso que nada abala minha crença que o Brasil
balho curatorial foi não ficar confinado em um tipo de irá sobreviver e creio que a cultura tem um papel nisso.
especialização, de uma arte que se constitui por certos E essa é uma das razões que trabalho com arte, que
estereótipos para se chamar de arte contemporânea, é essa coisa maravilhosa de ninguém pensar ou sentir
o que é paradoxal com a história da arte no século 20, uma obra de arte da mesma maneira. Todos nós temos
que sempre teve formas híbridas. Então poder trabalhar impressões distintas diante de uma sinfonia, ninguém vê
com acervos e uma programação que permite cruzar um quadro da mesma maneira e quando vê da segunda
literatura, fotografia, artes visuais, cinema é para mim vez já vê de forma diferente. E essa característica da
um desafio fascinante. arte, que permite radicalizar sem ao mesmo tempo fra-
gilizar o sentimento de comunidade, é o que eu acredito
Mas e chegar nesse momento tão difícil? ser o papel dos museus, das instituições culturais, das
Aí confesso que acho que o Brasil nunca vai deixar mor- salas de concerto e teatro, ou mesmo da rua. A expe-
rer a esperança. O país já passou por situações muito riência da diferença, de estar juntos sendo diferentes,
difíceis, como todos os países que viveram o mundo é muito importante. E a arte é das atividades humanas
colonial. No caso do Brasil, essa experiência bárbara que estimulam isso, que ensina a construir comuni-
e atroz, que perdura para além do próprio período da dade e estar juntos a partir das diferenças de sentir
escravatura, deixa feridas abertas pelas marcas, trau- e de pensar, mesmo em um país tão crispado como o
mas e cicatrizes. Mas o Brasil, no meio de toda dimensão Brasil é. Afinal, a estruturação desse país se deu com
trágica de sua história, sempre conseguiu criar formas tanto ódio, que se manifestou em formas de ameaça
de superar esses traumas. à condição humana — a escravatura tem papel central
nisso, é dos holocaustos mais hediondos da história da
O Hélio Oiticica criou a famosa frase... humanidade. Tudo isso se manifesta ainda, infelizmente,
Da adversidade viemos! E na adversidade encontrar a ale- presente na falta de respeito às questões raciais, às
gria em meia a tristeza mais profunda. O Brasil sobreviveu culturas ancestrais, à natureza. Mas por isso mesmo a
a ditaduras terríveis, houve momentos em que a condição arte e a cultura têm sobrevivido e criado novas formas,
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