Page 76 - ARTE!Brasileiros #47
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ARTIGO PANORAMA 36 DO MAM
do medalhão, do meganha e da meretriz, do coronel que se diz e se pensa sertanejo. O sertão agente leva
e do jagunço. O sertão do cabra marcado para na mala, leva na fala, leva na alma, lava de lágrimas
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morrer e dos Antônios das mortes , do cangaceiro e em cada obra que, a partir dele, se escreve, se cria, se
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do beato, do padrinho e do apadrinhado. O sertão do compõe, se pinta, se retrata, se formata, se contrata e
cabra macho e dos homens trabalhadores. O sertão se maltrata. O sertão continua funcionando na cultura
é só osso, não requer retóricas grandiloquentes, mas brasileira como essa grande interrogação, como essa
palavras roídas, palavras ruminadas, doloridas como grande pergunta, essa momentosa questão, como
pedras entre os dentes. O sertão resseca qualquer essa enorme angústia em torno do ser, que um dia
derramamento verboso. Mas por que continuamos levou Rosa a perseguir o ser do sertão ou o ser no
roendo os ossos do sertão sem nunca conseguirmos sertão por estradas e veredas sem fim. Se o sertão é
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atinar com seu sabor? Por que tanta baba derramada as terras do sem fim , essa inquirição nunca cessará,
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das salivações em torno do ser do sertão? O sertão é será infinita e infinda como ele. De vez em quando
para deleites ou não? poderemos olhar para trás e inventariar o que se
O sertão é uma saudade. O sertão é uma ausência, disse sobre ele, mas isso só fará reabrir a fome e a
no tempo e no espaço. O sertão é partida e desejo sede de dizê-lo, só alimentará a carência de sentido,
de volta. O sertão é até logo e nunca mais. O sertão só incentivará ao contínuo escavar desse oco dos
é uma dor, é uma lágrima pungente. O sertão é tempos e dos espaços que são os sertões: plurais,
sons, é cheiros, é sabores perdidos e reencontrados, diversos, imensos, esse oco dos sentidos em que em
reencantados, recontados, recatados, refeitos, cada um se abisma ao se debruçar sobre as bordas
retirados, exilados. O sertão entra por todos os do sertão e tentar mirá-lo nos olhos e no rosto. O
sentidos, atiça aqueles mais afeitos às reminiscências, sertão sempre escapa e, por isso, a busca nunca
às lembranças. O sertão é uma pele da qual se precisa cessa. O sertão é como a vida humana, carente de
dolorosamente se despir. O sertão é um gesto, o sentidos, mas, ao mesmo tempo, inundado de todas
sertão é um jeito, o sertão é um trejeito, o sertão é as possibilidades de sentido, inclusive do sentido
um verbo, o sertão é um dito e feito. O sertão entra nenhum, aberto para o nada, disposto a ser o nada.
por todos os buracos da cabeça e do corpo. O sertão
nos deixa de mansinho quando menos percebemos. O 1 Assim pensava Euclides da Cunha. CUNHA, Euclides. Os Sertões: campanha de Canudos.
sertão se desprega, desapega, se sonega e se renega 30ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981.
O tempo do sertão é assim descrito por Raimundo Carrero. CARRERO, Raimundo.
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nas dobras de nosso corpo. O sertão é uma roupa Romance do bordado e da pantera negra. São Paulo: Iluminuras, 2014.
velha que não serve mais, mas é enfeite e deleite 3 O sertão é armorial, cheio de brasões, símbolos e assinalações na obra de Ariano
para nossas pérolas literárias e musicais. O sertão é Suassuna. SUASSUNA, Ariano. Romance da Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do
ruim para viver, mas é bom para reviver em telas e Vai-e-Volta. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972.
Na voz e na música de Luiz Gonzaga. Légua tirana (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira),
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pedestais, em discursos e concursos. O sertão é um 1949 (RCA Victor).
armazém de sentidos, um caldeirão de signos, um 5 Esse é o sertão de Jorge Amado. AMADO, Jorge. Tocaia grande: a face obscura. São
arquivo de cenas e personagens, um baú da felicidade Paulo: Record, 1984.
6 O sertão do poeta João Cabral de Melo Neto. MELO NETO, João Cabral de. Paisagem com
artística e intelectual. O sertão é uma ausência que se figuras. In: Poesias Completas (1940-1965). Rio de Janeiro: Sabiá, 1968, p. 245-272.
faz presença permanente e premente. 7 Referência a MELO NETO, João Cabral de. Morte e Vida Severina. In: Op. Cit., p. 203-244.
O sertão é a nossa reserva de imaginação, por ser 8 Referência a ROCHA, Glauber. Eztetyka da Fome (1965). http://www.tempoglauber.com.
esse outro, esse fora, esse distante, no tempo e no br/t_estetica.html. Acesso em 30 de maio de 2019.
Referência ao documentário de Eduardo Coutinho, Cabra Marcado para Morrer, 1984.
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espaço; por ser esse estranho, esse estrangeiro; por 10 Referência ao personagem dos filmes de Glauber Rocha, Deus e o Diabo na Terra do Sol
ser esse deserto; por ser esse espaço devastado (1964) e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969).
e aberto onde se pode tudo construir, tudo 11 ROSA, Guimarães. Grande Sertão: veredas. 15ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982.
12 Referência a AMADO, Jorge. Terras do sem fim. São Paulo: Record, 1981.
arquitetar, tudo figurar; por ser esse espaço de
viagens, de visagens e nomadismos; por ser essa *Durval Muniz de Albuquerque Júnior é doutor em história, professor
terra desterritorializada, que pode ser levada para da Universidade Estadual da Paraíba. Escreveu o livro A Invenção do
Nordeste e Outras Artes, 1999, Cortez Editora.
qualquer lugar, porque ela viaja dentro de cada um
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