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ARTIGO PANORAMA 36 DO MAM






             do medalhão, do meganha e da meretriz, do coronel   que se diz e se pensa sertanejo. O sertão agente leva
             e do jagunço.  O sertão do cabra marcado para    na mala, leva na fala, leva na alma, lava de lágrimas
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             morrer  e dos Antônios das mortes , do cangaceiro e   em cada obra que, a partir dele, se escreve, se cria, se
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             do beato, do padrinho e do apadrinhado. O sertão do   compõe, se pinta, se retrata, se formata, se contrata e
             cabra macho e dos homens trabalhadores. O sertão   se maltrata. O sertão continua funcionando na cultura
             é só osso, não requer retóricas grandiloquentes, mas   brasileira como essa grande interrogação, como essa
             palavras roídas, palavras ruminadas, doloridas como   grande pergunta, essa momentosa questão, como
             pedras entre os dentes. O sertão resseca qualquer   essa enorme angústia em torno do ser, que um dia
             derramamento verboso. Mas por que continuamos    levou Rosa a perseguir o ser do sertão ou o ser no
             roendo os ossos do sertão sem nunca conseguirmos   sertão por estradas e veredas sem fim.   Se o sertão é
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             atinar com seu sabor? Por que tanta baba derramada   as terras do sem fim , essa inquirição nunca cessará,
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             das salivações em torno do ser do sertão? O sertão é   será infinita e infinda como ele. De vez em quando
             para deleites ou não?                            poderemos olhar para trás e inventariar o que se
             O sertão é uma saudade. O sertão é uma ausência,   disse sobre ele, mas isso só fará reabrir a fome e a
             no tempo e no espaço. O sertão é partida e desejo   sede de dizê-lo, só alimentará a carência de sentido,
             de volta. O sertão é até logo e nunca mais. O sertão   só incentivará ao contínuo escavar desse oco dos
             é uma dor, é uma lágrima pungente. O sertão é    tempos e dos espaços que são os sertões: plurais,
             sons, é cheiros, é sabores perdidos e reencontrados,   diversos, imensos, esse oco dos sentidos em que em
             reencantados, recontados, recatados, refeitos,   cada um se abisma ao se debruçar sobre as bordas
             retirados, exilados. O sertão entra por todos os   do sertão e tentar mirá-lo nos olhos e no rosto. O
             sentidos, atiça aqueles mais afeitos às reminiscências,   sertão sempre escapa e, por isso, a busca nunca
             às lembranças. O sertão é uma pele da qual se precisa   cessa. O sertão é como a vida humana, carente de
             dolorosamente se despir. O sertão é um gesto, o   sentidos, mas, ao mesmo tempo, inundado de todas
             sertão é um jeito, o sertão é um trejeito, o sertão é   as possibilidades de sentido, inclusive do sentido
             um verbo, o sertão é um dito e feito. O sertão entra   nenhum, aberto para o nada, disposto a ser o nada.
             por todos os buracos da cabeça e do corpo. O sertão
             nos deixa de mansinho quando menos percebemos. O   1  Assim pensava Euclides da Cunha. CUNHA, Euclides. Os Sertões: campanha de Canudos.
             sertão se desprega, desapega, se sonega e se renega   30ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981.
                                                               O tempo do sertão é assim descrito por Raimundo Carrero. CARRERO, Raimundo.
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             nas dobras de nosso corpo. O sertão é uma roupa   Romance do bordado e da pantera negra. São Paulo: Iluminuras, 2014.
             velha que não serve mais, mas é enfeite e deleite   3  O sertão é armorial, cheio de brasões, símbolos e assinalações na obra de Ariano
             para nossas pérolas literárias e musicais. O sertão é   Suassuna. SUASSUNA, Ariano. Romance da Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do
             ruim para viver, mas é bom para reviver em telas e   Vai-e-Volta. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972.
                                                               Na voz e na música de Luiz Gonzaga. Légua tirana (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira),
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             pedestais, em discursos e concursos. O sertão é um   1949 (RCA Victor).
             armazém de sentidos, um caldeirão de signos, um   5  Esse é o sertão de Jorge Amado. AMADO, Jorge. Tocaia grande: a face obscura. São
             arquivo de cenas e personagens, um baú da felicidade   Paulo: Record, 1984.
                                                              6  O sertão do poeta João Cabral de Melo Neto. MELO NETO, João Cabral de. Paisagem com
             artística e intelectual. O sertão é uma ausência que se   figuras. In: Poesias Completas (1940-1965). Rio de Janeiro: Sabiá, 1968, p. 245-272.
             faz presença permanente e premente.              7  Referência a MELO NETO, João Cabral de. Morte e Vida Severina. In: Op. Cit., p. 203-244.
             O sertão é a nossa reserva de imaginação, por ser   8  Referência a ROCHA, Glauber. Eztetyka da Fome (1965). http://www.tempoglauber.com.
             esse outro, esse fora, esse distante, no tempo e no   br/t_estetica.html. Acesso em 30 de maio de 2019.
                                                               Referência ao documentário de Eduardo Coutinho, Cabra Marcado para Morrer, 1984.
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             espaço; por ser esse estranho, esse estrangeiro; por   10  Referência ao personagem dos filmes de Glauber Rocha, Deus e o Diabo na Terra do Sol
             ser esse deserto; por ser esse espaço devastado   (1964)  e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969).
             e aberto onde se pode tudo construir, tudo       11  ROSA, Guimarães. Grande Sertão: veredas. 15ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982.
                                                              12  Referência a AMADO, Jorge. Terras do sem fim. São Paulo: Record, 1981.
             arquitetar, tudo figurar; por ser esse espaço de
             viagens, de visagens e nomadismos; por ser essa   *Durval Muniz de Albuquerque Júnior é doutor em história, professor
             terra desterritorializada, que pode ser levada para   da Universidade Estadual da Paraíba. Escreveu o livro A Invenção do
                                                              Nordeste e Outras Artes, 1999, Cortez Editora.
             qualquer lugar, porque ela viaja dentro de cada um


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