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ARTIGO PANORAMA 36 DO MAM
ESCAVANDO O OCO DO SENTIDO
OU O QUE SIGNIFICA SER-TÃO?
POR DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR*
Que imagens evoca o ouvir sertão? entanto, parece estar em toda parte. O sertão
No pensamento social brasileiro, na literatura e nas vive a condição de fronteira, ele está sempre se
artes brasileiras foi e é recorrentes a indagação pelo deslocando. O sertão sempre está mais a frente,
o que é o sertão, pelo seu significado, pelas figuras ele é uma procura e uma espera. Estamos sempre
que o poderiam representar. Afinal, o que se diz ao se perdendo o sertão de vista. Quando chegamos, ele
dizer sertão? Na busca de um só sentido, na procura já se foi, debandado. O sertão está sempre depois
de uma única definição, o encontro com o diverso, de acolá, depois da virada do caminho. O sertão é
com o disperso, com o divergente, o encontro com descaminho, é perdição, é errância. O sertão é errar,
o ambíguo, com o ambivalente. Na busca de ver e o sertão é errado. Quando chegamos às bordas do
de dizer o sertão, o encontro com os sertões. Na sertão, ele salta mais para adiante. Quando pensamos
escavação incessante em busca do ser do sertão, ter conquistado o sertão, ele se nega, caprichoso.
autores e obras foram e são tragados pelo vórtice de Quando pensamos ter dominado o sertão, ele se
sentido que é o enunciado sertão, rodopiam no oco arretira, ele foge mais para dentro.
de sua significação, são capturados pelo redemoinhar No entanto, ele continua como uma presença
de sua realidade, de sua identidade. Um ser tão obsedante, como uma interrogação a ser respondida,
múltiplo, tão desconforme consigo mesmo, como como um desafio a ser enfrentado, como uma meta
dizê-lo, como expressá-lo? Mas, afinal, quais imagens, a ser atingida. O sertão está ali, mas está aqui, está
que imaginário gira em torno desse topos e desse acolá. Quando pisamos o sertão ele escapole dos
lócus tão presentes na produção cultural brasileira? nossos pés, embora continue doendo em nossa alma,
Abramos as arcas da imaginação brasileira e façamos sendo miragem em nossos olhos.
um pequeno inventário do que se vê e do que se faz O sertão é uma distância. Ele sempre está mais
ver ao se falar em sertão. para lá do que para cá. Mas onde situá-lo? O sertão
O sertão é o outro. Alteridade, diferença. O é uma distância no tempo. O sertão é anacrônico, é
sertão é o estranho. O sertão é o outro do litoral, coisa passada, é coisa de outros tempos. O sertão
da civilização, da cidade, da modernidade, da pertence ao passado, é sua expressão e encarnação.
contemporaneidade. O sertão é o distante e o O sertão é tradição, é folclore, é coisas do arco da
distinto. Aquele espaço com o qual não se tem velha, é artesanal, não industrial. O sertão se faz
proximidade ou identidade. É o lugar do outro, a mão, em pontos de cruz. O sertão está morto,
do estranho, do selvagem, do bárbaro, do rústico, o sertão é o lugar da morte por excelência e
do rude, do atrasado, do dessemelhante, do incelências. Caminhar na direção do sertão é andar
bicho, do inumano. O sertão é outro e possui a na contramão do tempo . O sertão é recuo, o sertão
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infinita capacidade de outrar-se. Ele sempre se é ruína, o sertão é o que restou dos tempos idos. No
desassemelha, ele sempre se faz outro quando dele sertão o tempo se arrasta pesado, lerdo, banzo. No
nos aproximamos. Quanto mais se espia mais ele se sertão o tempo se espicha, se espreguiça, sonolento.
afigura mudado, metamorfoseado. O sertão é cobra O tempo do sertão é pegajoso, é como visgo,
que muda a pele todo santo dia. aprisionando a todos em sua marcha modorrenta.
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O sertão nunca está aonde o procuramos e, no Por isso, para se ver o sertão é preciso tomar
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