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ARTIGO ARTE E PSICANÁLISE

             produzida pela ambiguação metafórica da     incitação a um corpo por ser construído por
             língua, como parte do corpo e da língua como   nossa fantasia? A fantasia é o divisor do sujeito,
             meio da fala. Apunhalada é o significante   a estratégia pela qual ele se apreende como
             que faz interferência. Mas não vemos a faca   objeto para o outro ou como ele se divide como
             ou o punhal, apenas o sangue que escorre.   sujeito em seu próprio desejo. Ela é também
             Chegamos um segundo depois do ato. Mas      o indutor do sintoma: palavra amordaçada,
             percebemos a cena na qual ela nos mostra a   metáfora do desejo, censura de gozo.
             língua. Metáfora sobre metáfora, pois agora   Duas mulheres contemporâneas de Simone
             é um gesto de escárnio e repúdio, que vemos   de Bouvoir que pensam a arte com o corpo,
             nas crianças, e que sobrevive na mensagem da   mas também com uso do corpo que parece
             língua que não se dobra. O que temos aqui é um   inquietar-se com a estabilidade de suas
             funcionamento que faz parte da sexuação, não   imagens representativas. A contraface disso
             como semblante, mas como fantasia. Na série   encontramos em Wanda Pimentel. Nela há
             da fantasia, o essencial é dado pelo enquadre.   outro registro construtivo para os mesmos
             Este instante que define a montagem de um   pés e mãos deslocados. A mesma estratégia
             conjunto de perspectivas, para o qual nosso   de assexuação por subtração do corpo todo.
             olhar é convidado a entrar. Ficamos assim   São sempre corte, ângulos, perspectivas que
             conjecturando sobre o que teria acontecido   produzem este efeito na fantasia, de que a parte
             antes ou o que acontecerá depois.           ausente, nós mesmos temos que completar, com
             Reencontramos o tema da negativização       nossa própria fantasia. No ponto de cruzamento
             de uma parte do corpo em Lygia Clark com    entre a tradição formalista e na tradição pop
             Máscara Abismo com Tapa Olhos (1968).       temos este ponto comum de abordagem do real
             Aqui são os olhos que estão vendados, nos   da sexuação pela via da sua produção como
             impedindo de ver. Mas também é a boca       hipótese de fantasia, conjectura ou paródia,
             e, portanto, a língua que se direciona para   como diria Judith Butler. Como se estivéssemos
             um tubo rumo ao abismo. O tubo reticulado   aqui às voltas com uma crítica da sexualidade
             é transparente de modo que podemos ver      como mostração de semblantes. Lembremos a
             o batom bem delineado sob os lábios. A      observação simples de John Berger  de que a
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             mascarada é um conceito psicanalítico trazido   tela é, antes de tudo, um cofre onde o burguês
             por Joan Riviére e desenvolvido por Lacan   pratica sua arte de apossamento e acumulação
             como uma estratégia feminina de sexuação.   da experiência perdida.
             Não é que atrás da máscara exista a essência da   Lígia Clark, com sua deriva da arte para a
             sexualidade feminina, mas que historicamente   psicanálise e a correlata prática de invenção de
             ela se apropria da máscara para dizer que   experiências, assim como Lygia Pape com sua
             a feminilidade é apenas um conjunto de      aproximação com a arte gráfica e do design dos
             máscaras, como uma cebola infinita onde seu   conhecidos biscoitos Piraquê, acrescentaram ao
             centro interior se comunica com o exterior.     feminino, como problemática do semblante de
             Outra estrutura construída em torno do      si, a subjetivação da fantasia como uma tarefa.
             encobrimento é Divisor, de 1968, onde Lygia   Novamente, o que temos aqui é menos do que
             Clark coloca um lençol gigante nos quais as   a exposição de uma sexualidade crua em sua
             pessoas podem cobrir seus corpos e deixar suas   demanda de pleno exercício e acontecimento e
             cabeças de fora. Lembremos que o lençol é a   mais a tematização de uma assexução, ou seja,
             peça de roupa preferida pelos fantasmas. Ele   de como fracassamos em dizer a sexualidade,
             faz a função de véu, essencial ao trabalho da   tanto porque o objeto a atrapalha o semblante
             fantasia. Mas qual divisão? Entre cabeça visível   quanto porque ele introduz a fantasia da
             e corpo oculto? Entre a hipótese de fantasia de   asexuação. As duas formas estéticas que
             várias cabeças com um mesmo corpo? Cabeças   estavam juntas nos anos 1920, agora aparecem
             sem corpo? Como fantasmas assexuados        separadas. De um lado, a perspectiva tenta
             ou no lugar da ausência de corpo mostrado   sair do espaço bidimensional da tela (com seus


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