Page 78 - ARTE!Brasileiros #40
P. 78
ARTIGO ARTE E PSICANÁLISE
produzida pela ambiguação metafórica da incitação a um corpo por ser construído por
língua, como parte do corpo e da língua como nossa fantasia? A fantasia é o divisor do sujeito,
meio da fala. Apunhalada é o significante a estratégia pela qual ele se apreende como
que faz interferência. Mas não vemos a faca objeto para o outro ou como ele se divide como
ou o punhal, apenas o sangue que escorre. sujeito em seu próprio desejo. Ela é também
Chegamos um segundo depois do ato. Mas o indutor do sintoma: palavra amordaçada,
percebemos a cena na qual ela nos mostra a metáfora do desejo, censura de gozo.
língua. Metáfora sobre metáfora, pois agora Duas mulheres contemporâneas de Simone
é um gesto de escárnio e repúdio, que vemos de Bouvoir que pensam a arte com o corpo,
nas crianças, e que sobrevive na mensagem da mas também com uso do corpo que parece
língua que não se dobra. O que temos aqui é um inquietar-se com a estabilidade de suas
funcionamento que faz parte da sexuação, não imagens representativas. A contraface disso
como semblante, mas como fantasia. Na série encontramos em Wanda Pimentel. Nela há
da fantasia, o essencial é dado pelo enquadre. outro registro construtivo para os mesmos
Este instante que define a montagem de um pés e mãos deslocados. A mesma estratégia
conjunto de perspectivas, para o qual nosso de assexuação por subtração do corpo todo.
olhar é convidado a entrar. Ficamos assim São sempre corte, ângulos, perspectivas que
conjecturando sobre o que teria acontecido produzem este efeito na fantasia, de que a parte
antes ou o que acontecerá depois. ausente, nós mesmos temos que completar, com
Reencontramos o tema da negativização nossa própria fantasia. No ponto de cruzamento
de uma parte do corpo em Lygia Clark com entre a tradição formalista e na tradição pop
Máscara Abismo com Tapa Olhos (1968). temos este ponto comum de abordagem do real
Aqui são os olhos que estão vendados, nos da sexuação pela via da sua produção como
impedindo de ver. Mas também é a boca hipótese de fantasia, conjectura ou paródia,
e, portanto, a língua que se direciona para como diria Judith Butler. Como se estivéssemos
um tubo rumo ao abismo. O tubo reticulado aqui às voltas com uma crítica da sexualidade
é transparente de modo que podemos ver como mostração de semblantes. Lembremos a
o batom bem delineado sob os lábios. A observação simples de John Berger de que a
1
mascarada é um conceito psicanalítico trazido tela é, antes de tudo, um cofre onde o burguês
por Joan Riviére e desenvolvido por Lacan pratica sua arte de apossamento e acumulação
como uma estratégia feminina de sexuação. da experiência perdida.
Não é que atrás da máscara exista a essência da Lígia Clark, com sua deriva da arte para a
sexualidade feminina, mas que historicamente psicanálise e a correlata prática de invenção de
ela se apropria da máscara para dizer que experiências, assim como Lygia Pape com sua
a feminilidade é apenas um conjunto de aproximação com a arte gráfica e do design dos
máscaras, como uma cebola infinita onde seu conhecidos biscoitos Piraquê, acrescentaram ao
centro interior se comunica com o exterior. feminino, como problemática do semblante de
Outra estrutura construída em torno do si, a subjetivação da fantasia como uma tarefa.
encobrimento é Divisor, de 1968, onde Lygia Novamente, o que temos aqui é menos do que
Clark coloca um lençol gigante nos quais as a exposição de uma sexualidade crua em sua
pessoas podem cobrir seus corpos e deixar suas demanda de pleno exercício e acontecimento e
cabeças de fora. Lembremos que o lençol é a mais a tematização de uma assexução, ou seja,
peça de roupa preferida pelos fantasmas. Ele de como fracassamos em dizer a sexualidade,
faz a função de véu, essencial ao trabalho da tanto porque o objeto a atrapalha o semblante
fantasia. Mas qual divisão? Entre cabeça visível quanto porque ele introduz a fantasia da
e corpo oculto? Entre a hipótese de fantasia de asexuação. As duas formas estéticas que
várias cabeças com um mesmo corpo? Cabeças estavam juntas nos anos 1920, agora aparecem
sem corpo? Como fantasmas assexuados separadas. De um lado, a perspectiva tenta
ou no lugar da ausência de corpo mostrado sair do espaço bidimensional da tela (com seus
78
Book_ARTE 40_Bilingue.indb 78 9/21/2017 3:56:55 PM