Page 79 - ARTE!Brasileiros #40
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o gozo masculino na medida em que eles são
formalizáveis por meio de dois tipos distintos
de infinito. Quando digo formalizáveis me refiro
a possibilidade de que o gozo se escreva e
nisso ele tem esta primeira característica de
que uma vez que ele começa, temos sempre
medo de que não vai parar mais. Como se diz,
se dou o dedo ele quer o braço e se dou o braço
ele vai querer levar as pernas. O gozo é um
perigo porque ele sempre quer mais, inclusive
o gozo opressivo do supereu. Estamos aqui
no registro antropofágico do mal-estar. Um de
seus suportes mais fecundos é justamente a
metáfora da escrita.
Este problema da infinitude do gozo aparece
vigorosamente em Anna Maiolino. Para ela
Tudo Começa pela Boca, a boca que devora
infinitamente um fio, ou então a boca que
LÍNGUA APUNHALADA, (1968), LYGIA PAPE regurgita infinitamente um fio em In And
Out . Fios que prendem os cabelos da artista,
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como uma tiara, deixando-a jovem e infantil.
trípticos e suas superfícies de Moebius gigantes). Tiara que se desdobra em uma segunda volta,
De outro lado a deformação parece tomar tornando-a uma múmia, prisioneira de seu
consciência dos sistemas de encobrimento: a próprio fio. Múmia que se transforma em um
máscara, o vestido, o envoltório. nó que aprisiona e fecha o circuito. Finalmente
Se o semblante faz gênero, a fantasia faz nó que termina na metáfora sintomática do
espécie. Por isso há sempre um descompasso “embrulhada para presente”, com um lindo
entre nossa experiência coletiva do gênero e laço na ponta. Processo descritivo de como o
nossa singularidade de fantasia. Neste caso infinito de uma linha vai se transformando na
isso pode ser mostrado pela oposição entre finitude de uma unidade compacta. Processo
a contradição social, em um momento de que permite mostrar como começamos na série
silenciamento da palavra, e principalmente infinita e ambígua, passamos pela fantasia e
redobramento do silenciamento das mulheres chegamos ao semblante. A Mulher Presente,
e a forma estética que inverte este processo a Mulher Embrulhada para Presente ... só que
ao colocá-lo em uma linguagem específica não, pois é justamente a Mulher Ausente.
desta mulher. Processo homólogo aparece em Shirley
Paes Leme e seus trabalhos sobre ranhuras,
3. GOZO FEMININO gravetos, filamentos como em Fumaça
Chegamos assim ao terceiro momento destas Congelada sobre Tela de 2015, onde a
histórias. A partir dos anos 2000, muitas textura e a seriação das letras aparece dando
artistas brasileiras começam a se interessar materialidade ao livro, não como forma
pelo traço. Como se nessa diferença mínima, e expressiva, mas como fio de letras que se
na sua repetição, algo se escreve sobre o gozo dispõe como forma estética. Se a sexuação
feminino. Isso está nos alfabetos poéticos de masculina pode ser escrita como uma reta
Mira Schendel, nas variedades composicionais de números naturais, onde podemos contar
dos retalhos de Leda Catunda, no grafismo {1,2,3, ... n} a sexuação do gozo feminino é
hiperintenso de Teresinha Soares. uma reta de número reais onde não podemos
Para Lacan, o gozo feminino tem uma contar com suas regras de formação {0, 1}.
propriedade interessante em sua diferença para Não há binário aqui porque a reta dos naturais
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