Page 76 - ARTE!Brasileiros #40
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ARTIGO ARTE E PSICANÁLISE






             A SEXUALIZAÇÃO FEMININA


             NAS ARTES PLÁSTICAS BRASILEIRAS





             EM MAIO, O PSICANALISTA CHRISTIAN DUNKER FOI CONVIDADO PELO MASP PARA PARTICIPAR DO SEMINÁRIO
             HISTÓRIAS DA SEXUALIDADE. LEIA, NA ÍNTEGRA,O ARTIGO QUE ELE APRESENTOU NO EVENTO


             POR CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER


            1. SEMBLANTE DE MULHER                       constrói terá este traço fundamental de que
            Anita Malfatti tornou-se conhecida a partir de   há uma parte que falta. Ou seja, além de
            uma tela pintada em 1916 e exposta em Paris,   conciliar uma forma estética deformativa com
            chamada A Boba. Anita nasceu em 1889, ano    uma contradição social representada pela
            da proclamação da República, apenas um       liberdade que se avizinha, ainda que não se
            ano antes da lei que libertou os escravos no   realize, há um detalhe a mais, que dá o tom
            Brasil. Ela morreu em 1964, apenas dois anos   especificamente singular desta mulher: a
            antes que eu mesmo tivesse nascido. Este     ocultação característica do braço esquerdo.
            fato devia nos surpreender mais. Apenas uma   Sabe-se que Anitta tinha muita vergonha de
            existência separa este que vos fala de uma   um pequeno defeito em sua mão esquerda.
            época de escravidão. Anita pintou mulheres   Defeito que teria contribuído para formar seu
            fazendo uso da deformação expressionista e   caráter recluso e talvez tivesse impedido que
            da decomposição perspectiva praticada pelo   ela se declarasse ao seu amor improvável,
            cubismo. Ou seja, quando mulheres começam    Mário de Andrade.
            a produzir seus próprios semblantes nesta    Semblante é um dos operadores da sexuação.
            linguagem específica das artes visuais, elas o   O semblante unifica e compõe uma variedade
            fazem segundo uma consciência estética às    de traços, em sistemas de linguagens distintos,
            voltas com o tema da perda da coisa. Certo que   formando uma unidade. A sexuação é semblante
            este é um problema comum para as vanguardas   porque ela exige um ato performativo pelo qual
            dos anos 1920, ou seja, a coisa só pode ser   cada qual assume, um semblante. No mesmo
            recuperada se admitirmos estratégias de      sentido em que a fala é a assunção de uma língua
            negativização do Real. Se o realismo romântico   por aquele que fala. Assumir um semblante não é
            e também o certo impressionismo pretendia    identificar-se com traços essenciais do que é ser
            apreender a relação entre a representação e   mulher ou do que é ser homem, mas construir
            a coisa, os anos 1920 descobrem que o real se   uma unidade entre as histórias. Neste caso a
            apreende pela via do negativo, pela retomada   história de opressão a deformação estética
            da experiência perdida, pelo retorno da      encontra sua unidade na subtração de um
            presença a partir da ausência. Surge então um   elemento. Um elemento faltante em quase todas
            olhar que capta os acontecimentos em série e   as suas telas: a mão esquerda.
            que se distribui entre estratégias de negação,   Com é possível que um acidente deste tipo
            repetição e deformação.                      crie para alguém o sentido de um sofrimento
            Mas perder-se como coisa é deixar a escravidão.   punitivo? Parece-nos aceitável que alguém se
            É emancipar-se como posição de olhar e       envergonhe das características disfuncionais
            lugar de fala. O semblante feminino que Anita   de seu corpo. Mas como a parte pelo todo


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