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ARTIGO ARTE E PSICANÁLISE
A SEXUALIZAÇÃO FEMININA
NAS ARTES PLÁSTICAS BRASILEIRAS
EM MAIO, O PSICANALISTA CHRISTIAN DUNKER FOI CONVIDADO PELO MASP PARA PARTICIPAR DO SEMINÁRIO
HISTÓRIAS DA SEXUALIDADE. LEIA, NA ÍNTEGRA,O ARTIGO QUE ELE APRESENTOU NO EVENTO
POR CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER
1. SEMBLANTE DE MULHER constrói terá este traço fundamental de que
Anita Malfatti tornou-se conhecida a partir de há uma parte que falta. Ou seja, além de
uma tela pintada em 1916 e exposta em Paris, conciliar uma forma estética deformativa com
chamada A Boba. Anita nasceu em 1889, ano uma contradição social representada pela
da proclamação da República, apenas um liberdade que se avizinha, ainda que não se
ano antes da lei que libertou os escravos no realize, há um detalhe a mais, que dá o tom
Brasil. Ela morreu em 1964, apenas dois anos especificamente singular desta mulher: a
antes que eu mesmo tivesse nascido. Este ocultação característica do braço esquerdo.
fato devia nos surpreender mais. Apenas uma Sabe-se que Anitta tinha muita vergonha de
existência separa este que vos fala de uma um pequeno defeito em sua mão esquerda.
época de escravidão. Anita pintou mulheres Defeito que teria contribuído para formar seu
fazendo uso da deformação expressionista e caráter recluso e talvez tivesse impedido que
da decomposição perspectiva praticada pelo ela se declarasse ao seu amor improvável,
cubismo. Ou seja, quando mulheres começam Mário de Andrade.
a produzir seus próprios semblantes nesta Semblante é um dos operadores da sexuação.
linguagem específica das artes visuais, elas o O semblante unifica e compõe uma variedade
fazem segundo uma consciência estética às de traços, em sistemas de linguagens distintos,
voltas com o tema da perda da coisa. Certo que formando uma unidade. A sexuação é semblante
este é um problema comum para as vanguardas porque ela exige um ato performativo pelo qual
dos anos 1920, ou seja, a coisa só pode ser cada qual assume, um semblante. No mesmo
recuperada se admitirmos estratégias de sentido em que a fala é a assunção de uma língua
negativização do Real. Se o realismo romântico por aquele que fala. Assumir um semblante não é
e também o certo impressionismo pretendia identificar-se com traços essenciais do que é ser
apreender a relação entre a representação e mulher ou do que é ser homem, mas construir
a coisa, os anos 1920 descobrem que o real se uma unidade entre as histórias. Neste caso a
apreende pela via do negativo, pela retomada história de opressão a deformação estética
da experiência perdida, pelo retorno da encontra sua unidade na subtração de um
presença a partir da ausência. Surge então um elemento. Um elemento faltante em quase todas
olhar que capta os acontecimentos em série e as suas telas: a mão esquerda.
que se distribui entre estratégias de negação, Com é possível que um acidente deste tipo
repetição e deformação. crie para alguém o sentido de um sofrimento
Mas perder-se como coisa é deixar a escravidão. punitivo? Parece-nos aceitável que alguém se
É emancipar-se como posição de olhar e envergonhe das características disfuncionais
lugar de fala. O semblante feminino que Anita de seu corpo. Mas como a parte pelo todo
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