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ARTIGO ARTE E PSICANÁLISE
VOCÊ ME DÁ SUA PALAVRA? (2004-2014), ELIDA TESSLER
compreende um elemento anômalo que é o zero fantasias e ainda de nossas identidades de
e a reta dos reais compreende imprevisibilidade gozo. Isso produziria histórias não concêntricas,
e ausência de fechamento. Com isso, tanto o histórias que não seriam contemporâneas de si
fechamento do semblante quanto a proporção mesmas, nem anacrônicas em relação ao Outro.
da fantasia são subvertidos por uma experiência Histórias contingentes. É isso que se poderia
da não identidade, da contra identidade. O mal- esperar da entrada do infinito como conceito
estar do não-todo aparece ainda na obra de Elida crítico para a experiência de gênero e suas
Tessler, principalmente no processo de rescrita fantasias. Histórias que não seriam necessárias,
de objetos historicamente ligados à experiência nem apenas possíveis, por representar um ponto
feminina: prendedores de roupas, chaves, toalhas de vista ou perspectiva, como qualquer outra.
de mãos, meias de seda, lupas, rolhas, esmaltes de Nosso tempo de concorrência de narrativas, de
unha. Repetidos indefinidamente e escriturados, histórias feitas às pressas, de retalhos de pós-
eles perdem seu suporte de sofrimento e sintoma, verdade, precisa levar mais a sério aquilo que
aparecendo como nomeação do mal-estar. ofende sua unidade constituída de capítulos
fixos. Precisa levar em conta que a loucura, a
4. CONCLUSÃO miséria e a vulnerabilidade que produz milhares
Trouxe aqui três capítulos de uma reta infinita. de rejeitados. A história das sexualidades é
Capítulos de uma história que subverte seus próprios tensão entre forma estética e contradição
segmentos, pois não precisa ser contada assim, social. Ela serve para nos lembrar que usar
em ordem ou ao modo de uma série. Temos então corpos humanos, tratados apenas como matéria
outras histórias da sexualidade para contar, pois prima para o espetáculo da limpeza social, não
cada momento em que estamos recria uma história é apenas um crime higienista e uma segregação
que o torna ao mesmo tempo possível, nos trazendo tolerada, mas ela inventa e reproduz gramáticas
para um universo de verdade em estrutura de ficção, políticas que depois grudarão em nossos olhos,
mas também para o impossível impensável de cada nos desacostumando com o estranhamento
instante, que é o instante impossível do agora. diante do sofrimento.
Para podermos contar novas histórias, precisamos 1 ) Berger, J. (1973) Modos de Ver. São Paulo: Rocco (1999).
nos libertar tanto dos semblantes quanto das 2) In-Out (Antropofagia), 1973/74, duração 8’27’’
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Book_ARTE 40_Bilingue.indb 80 9/21/2017 3:57:00 PM