Page 77 - ARTE!Brasileiros #40
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Enquanto as obras de Anita envolvem títulos
metonímicos e descritivos, como A Boba,
A Estudante Russa ou a Mulher de Verde,
os retratos de Tarsila evocam nomeações
metafóricas, como as que se poderia criar
para seu autorretrato em vestido vermelho:
A Mulher Farol, A Dama de Ferro. É também
pela exageração que as partes do corpo
tomarão conta do semblante de mulher em
Abapuru, o nosso Antropófago fundador, que
não deixemos de lembrar, foi um presente de
aniversário Tarsila para seu marido Oswald de
Andrade. Nele vemos imensos mão e pé. Nele a
boca, órgão antropofágico por excelência está
ausente. Vemos ainda uma estranha estrutura
que pode ser um nariz, ou um seio, talvez um
braço deslocado ou dobrado, sobre o qual o
melancólico apoia seu rosto.
O que temos, nos dois casos, Anita e Tarsila, é
uma espécie de incompletude da representação
de si, de pequena falha no semblante, referida
à interferência desta função que Lacan chamou
de objeto a: as mãos subtraídas, a mancha ou
a nódoa que indetermina o fechamento da
forma, a ilusão ou engano na composição da
unidade do corpo. Isso contrasta vivamente
com o modo como se apresenta o semblante de
Mário de Andrade, pintado em toda sua solidez
A BOBA,(1916), ANITA MALFATTI e inteireza, tanto por uma quanto por outra.
tornou-se, neste caso, uma espécie de 2. FANTASIAS DE CORPO
metonímia feminina. Argumento que isso capta Situação análoga, porém de outra natureza,
algo que extrapola o caso singular, contendo se encontrará na análise comparativa de duas
em si a disposição histórica da feminilidade damas do neoconcretismo dos anos 1960. Na
do Brasil nos anos 1930: o sofrimento com a tela Retrato de Regina, de 1949, vemos uma
vergonha do próprio corpo. jovem Lygia Clark que parece ter se formado
O aspecto metafórico deste semblante pode na experiência da assexuação modernista. A
ser encontrado em Tarsila do Amaral. Em tristeza do olhar, a abstinência das mãos, o
seu auto-retrato também encontramos este modelo infantil.
pequeno gesto pelo qual a mão direita encobre Vejamos o contraste disso com a Lygia Pape de
a esquerda. A mão boba desta vez está ausente Língua Apunhalada (1968). Não estamos mais
de outra maneira. Não se trata de deformação na produção de um semblante feminino com
ou de desencaixe perspectivo, mas de uma seu traço de negatividade, mas na metáfora
verdadeira ausência. Ausência que nos passa da impossibilidade de dizer. Novamente temos
desapercebida porque o vestido vermelho a aqui a conjugação entre uma contradição
envolve. Envolta e protegida, por uma espécie social, representada pela censura praticada
de armadura, a tela é composta logo depois pela ditadura civil militar e uma forma
da primeira exposição da artista em Paris, na estética, desta vez sem deformação alguma,
Galeria Percier, em 1926. posto que fotográfica. A forma estética é
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