Obras da série Sonhíferas, de Solange Pessoa
Obras da série "Sonhíferas", de Solange Pessoa, expostas no Arsenale. Foto: Roberto Marossi / Cortesia Bienal de Veneza

Talvez seja importante dizer que estive na 59ª Bienal de Veneza após ter visitado a documenta de Kassel e a Bienal de Berlim, ambas muito complexas, com trabalhos que demandam tempo e concentração, e que abordam a difícil realidade do mundo atual, cada uma a seu jeito.

Por isso, ver Veneza, de certa forma, foi uma suspensão do tempo presente, quase um alívio. A mostra a cargo da italiana radicada em Nova York Cecilia Alemani é, essencialmente, uma sucessão de belos e agradáveis trabalhos, nos dois locais-sede da mostra internacional: o Arsenale e o Pavilhão Central, no Giardini, onde também fica boa parte das representações nacionais.

Possivelmente, se eu tivesse feito o roteiro inverso, teria me decepcionado com uma mostra tão fora do contexto atual. Prorrogada, afinal, por conta dos anos mais difíceis da pandemia – ela estava prevista para 2021-, não há nada nela que lembre o caos sanitário e socioeconômico gerado pela Covid-19 e nem da guerra em curso na Europa.

Mesmo assim, há uma excelente menção ao estado disso tudo: é o vídeo do artista brasileiro Luis Roque, que filmou por algum tempo, em 2020, urubus vistos de sua janela, sobrevoando a vizinhança, como a anunciar as mortes que se seguiram aos milhares frente ao descaso do governo. Assim, Urubu acaba sendo um dos poucos contrapontos a esse contexto onírico da curadora, que usa emprestado o título do livro The Milk of Dreams (o leite dos sonhos), de Leonora Carrington (1917-2011) para conceituar sua própria mostra.

Ao menos a Bienal de Veneza tem tudo a ver com um debate atual e necessário: o da reparação. Dessa forma, exibir mais mulheres que homens e incluir negros e indígenas como nunca havia ocorrido por ali é um gesto importante, contra o apagamento de mais de um século na mais prestigiada bienal. Ao mesmo tempo, são trabalhos com uma camada estética muito dominante e um debate social, quando ocorre, sem contundência, o que torna toda a mostra muito reluzente, como nas pinturas de Jaider Esbell, em que o caráter onírico é sempre prevalente.

Essa condição um tanto homogênea, no entanto, não impede boas descobertas como as pinturas e bordados da cantora chilena Violeta Parra (1917-1967), que eram chamadas por ela de “canciones que se pintan”. Essas obras, aliás, foram expostas no Louvre, em 1964, sendo ela a primeira latina a ser exibida no museu francês. Em Veneza, Parra comparece com três bordados, técnica também usada por outra latino-americana, a haitiana Myrlande Constant. Por sua vez, fios são a base das sofisticadas esculturas de Ruth Asawa (1926-2013), uma ex-aluna da Black Mountain College.

Outro contraponto ao conjunto resplandecente da seleção de Alemani é a instalação de Barbara Kruger, Untitled (Beginning/Middle/End) (sem título/começo, meio e fim), aliás, das poucas obras comissionadas para esta edição. Ela faz referências ao tempo atual nos vídeos que compõe a instalação e repetem frases como “please care” (por favor, tome cuidado) e “please mourn” (por favor, faça o luto), referências explícitas às mortes da pandemia.

Artistas mulheres de fato estão muito bem representadas em amplos conjuntos, caso da portuguesa Paula Rego, que morreu agora em junho aos 87 anos, e da alemã Rosemarie Trockel, com um impressionante grupo de “pinturas” feitas através de bordados realizados por máquinas.

Há uma valorização da manualidade na elaboração das obras, que faz com que nesta mostra haja de fato muitos trabalhos bordados, costurados, produzidos de forma um tanto individualizada, dentro do ateliê. Nesse segmento, entre as obras mais impressionantes estão as esculturas de grandes dimensões em barro do argentino Gabriel Chaile. Em formatos antropomórficos, as cinco esculturas representam sua família e dialogam com a tradição das culturas pré-colombianas na América Latina.

Do Brasil, além de Roque e Esbell, participam também Lenora de Barros, Solange Pessoa e Rosana Paulino. As duas últimas comparecem com grandes conjuntos, especialmente Pessoa, que além de 14 imensos painéis com figuras orgânicas dentro do Arsenale, também ocupa o jardim fora do espaço com esculturas de pedra-sabão.

Cinco pequenas mostras dentro da curadoria de Alemani complementam ainda esta edição da bienal, cada uma sendo consideradas uma “cápsula do tempo”, algumas a cargo de curadoras externas. Elas simulam gabinetes de curiosidade, com suas vitrines e cores próprias, a partir de designers do estúdio Formafantasma.

Representações nacionais

Nesta edição, que vai até 27 de novembro, a artista que ganhou o Leão de Ouro como melhor participação na mostra internacional foi a norte-americana Simone Leigh, que abre e encerra The Milk of Dreams no Arsenale, além de representar os EUA nesta bienal.

As representações nacionais, aliás, seguem sendo uma confusão, onde ao contrário de um excelente nível na mostra internacional, padecem de uma discrepância impressionante, de pavilhões com ótimos trabalhos a outros bastante constrangedores, como ocorreu desta vez com Jonathas de Andrade, pelo Brasil. Ao levar para o pavilhão expressões populares brasileiras, ilustrando algumas delas com esculturas um tanto cafonas, o conjunto parecia perdido em traduções, sem levar em conta o contexto internacional da mostra.

O que se destaca: a Polônia, com uma imensa instalação em tecido de Malgorzata Mirga-Tas; a Bélgica, com Francys Alÿs e seus vídeos de crianças brincando em várias partes da Terra; a França, com Zineb Sedira, em um divertido filme sobre seu amor pelo cinema; e a Inglaterra, que recebeu o Leão de Ouro por melhor pavilhão, com Sonia Boyce e um trabalho que parte das vozes de cantoras negras. A questão agora é como manter essa representatividade toda nas futuras edições.

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