O cantor e compositor carioca Marcos Valle.
O cantor e compositor carioca Marcos Valle. Foto: Divulgação / Far Out Recordings

Em 1959, o lançamento do álbum Chega de Saudade, a estreia luminar de João Gilberto, foi como um renascimento para a música popular brasileira. Os estatutos de João, defendidos com a força de seu violão, seu canto sussurrado e o lirismo econômico de suas canções e de Vinicius de Moraes passaram a nortear a produção daquele início de anos 1960. Na virada de uma década encerrada com a modernidade desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek, uma transição sem precedentes também acontecia em nossa música popular. Saíam de cena a dramaticidade herdada do bolero, o romantismo exacerbado das letras passionais e o recorrente histrionismo vocal para dar lugar ao despojamento temático e à sofisticação harmônica da bossa nova. Logo público e mercado acolheriam novos compositores, como Tom Jobim, João Donato, Roberto Menescal, Johnny Alf e Carlos Lyra.

Foi nesse ambiente prolífero e estimulante que o jovem compositor Marcos Valle iniciou sua carreira profissional aos 20 anos de idade. Um dos artífices da chamada segunda geração de bossanovistas, escoltado pelo irmão e inseparável letrista, Paulo Sergio Valle, o cantor, compositor, pianista e violonista carioca debutou em registro fonográfico em 1963, como um discípulo ortodoxo de João Gilberto, com o álbum Samba Demais. Artista plural, sua carreira logo se desdobrou em vertentes marcadas pelo hibridismo de gêneros musicais. Defendendo um som universal análogo às propostas do tropicalismo, mas sem fazer disso uma questão panfletária, a bossa de Marcos Valle ganhou acentos de baião, funk, soul, jazz, rock e até tango.

É o que deixa evidenciar a recém-lançada caixa Valle Tudo, que compila em 11 CDs a produção completa do compositor para a gravadora Odeon (hoje, EMI). Reunindo todos os títulos lançados pelo músico entre 1963 e 1974, Valle Tudoainda traz um disco inédito, que ganhou o nome The Lost Sessions, resgatado por Charles Gavin nos arquivos da gravadora. Seria o terceiro disco de carreira de Marcos, mas foi engavetado logo após a segunda ida do artista aos Estados Unidos, em 1966, motivada pelo grande sucesso de Samba de Verão.

Somados ao CD Estática, lançado em 2010 pela Far Out Recordings, selo inglês que representa o cantor desde 1997, os 12 títulos motivam uma revisão da importância da obra dos irmãos Valle e também dos rumos tomados pela MPB nos anos 1960 e 1970. Ao longo de duas horas, conversamos com o cantor, compositor e arranjador, que reside no Recreio dos Bandeirantes, no Rio de Janeiro, e havia completado 68 anos na véspera da entrevista a seguir.

Brasileiros – Você, quando criança, era louco por Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro. Como é que um garoto carioca, de Copacabana, foi se interessar por essa música tão nordestina?
Marcos Valle – Meu pai gostava muito de música popular e não perdia um disco do Gonzagão, do Jackson e do Dorival Caymmi. Papai se chamava Eurico Paulo Valle – era advogado, morreu há 19 anos – e era muito aberto à música produzida no Norte e no Nordeste, pois, com exceção de meu avô materno – que veio da Alemanha, mas também foi morar em Belém, onde conheceu minha avó – toda minha família é do Pará. Além do baião, chegava o Carnaval e eu ficava louco com as marchinhas e os sambas. Essa força da música popular mexeu muito com minha cabeça de criança, mas ao mesmo tempo havia a influência erudita da minha avó materna, Alice, que tocava piano clássico. Mamãe, que se chamava Liselotte, ia frequentemente à casa da minha avó para tocar piano, e lembro que eu ficava fascinado ao ouvir as duas tocarem. Comecei a mostrar interesse pelo instrumento, vez ou outra dedilhava o piano, até que as duas passaram a suspeitar que eu tinha alguma inclinação para a música. Quando eu estava prestes a completar 6 anos, resolveram me levar a um conservatório, em Ipanema, para as professoras avaliarem se eu tinha mesmo alguma vocação ou se era apenas um deslumbramento de mãe e de avó. Fiz alguns testes, concluíram que eu tinha grande vocação e me aconselharam a começar estudar, imediatamente.

Tempos depois você se também se interessou pelo acordeom.
Estudei piano clássico por quase oito anos, e o acordeom, que já estava há muito tempo na minha cabeça por causa do Gonzagão, surgiu por conta de uma festa na casa de meu avô paterno, Eurico de Freitas Valle, que chegou a ser governador do Pará. Vovô Eurico tinha uma casa na Tijuca, um daqueles casarões bonitos, antigos, e um belo dia ele decidiu dar uma grande festa de aniversário para a minha avó. Eu tinha por volta de 12 anos, e ele convidou um conjunto musical para animar a noite. Havia um acordeonista fantástico, Chiquinho do Acordeom, tocando com eles. Fiquei maluco quando vi o Chiquinho tocando. Para mim, a festa acabou ali. Percebendo que não tirei os olhos dele um minuto, ele chegou para minha mãe e disse: “Liselotte, teu filho, pelo visto, é vidrado em música”. Ela disse que sim, que eu estudava piano clássico, e eu, mais que rápido, interrompi os dois para dizer a ela: “Mãe, quero muito aprender a tocar isso!”. O Chiquinho me incentivou, disse que eu deveria mesmo estudar o acordeom, pois ele me daria ainda mais possibilidades musicais, uma vez que eu também gostava de música popular. Comecei a fazer as primeiras aulas e foi algo muito fácil. O professor logo veio me dizer que eu não precisava estudar mais. Tinha 12 para 13 anos. Quando veio essa paixão pelo acordeom fui me desviando cada vez mais para a música popular – para desespero de minha avó e da professora de música clássica –, mas a soma desses elementos foi extremamente importante para mim. Estudava Ravel, Debussy, Chopin, com o mesmo interesse que ouvia um bom baião.

E o violão? Quando você decidiu passar para as cordas? 
O violão veio um pouco depois, com a paixão por João Gilberto e a bossa nova. Ouvi o João, já em 1959, bem no calor do lançamento do Chega de Saudade, e conclui que precisava aprender violão urgentemente. Tive umas três ou quatro aulas com um professor chamado Paulinho Bertazzo e, logo depois, entrei na academia do Roberto Menescal e do Carlinhos Lyra. Em poucos dias de aula os dois, em comum acordo, também chegaram para mim e disseram: “Cara, sinto muito, mas acho que você já sabe tudo. Não tem mais o que estudar!”. Eu tinha toda aquela base do piano e bastava dominar a parte digital e as batidas do violão, porque eu já tinha os conceitos musicais com muita força, assimilava tudo muito rápido. Em meus trabalhos, acabei utilizando muito mais o piano do que o violão e o acordeom . Hoje uso também um instrumento muito próximo do acordeom, a escaleta, que é tocada com sopro.

Marcos Valle agachado, em pé logo acima Macaco,Geraldinho Dutra e Marcelo
Marcos Valle agachado, em pé logo acima Macaco,Geraldinho Dutra e Marcelo

E quando é que você começou a escrever as primeiras composições?
Comecei a esboçar as primeiras músicas no acordeom. Fazia canções ingênuas, para a namorada, para agradar as menininhas, tocava algumas delas em festinhas e até fiz um conjuntinho. Tocávamos em troca de sanduíches e refrigerantes. Minha primeira música séria foi Desejo de Mar, mas não foi a primeira gravada. Tempos depois o Johnny Alf fez um belo registro dela, mas minha primeira gravação foi Sonho de Maria, registrada pelo Tamba Trio. Foi também minha primeira parceria com o Paulo Sergio. A letra, na verdade, era uma poesia que ele tinha escrito e veio me perguntar se daria para musicar. Algo muito difícil, porque tinha uma métrica variada, o que me obrigou a escrever quatro partes para a música, e foi um desafio muito bom, enriqueceu a composição.

Antecipando o assunto, como é que pode haver tamanha sinergia entre vocês dois? Ouvindo as dezenas de músicas que vocês fizeram, a impressão que se tem é que tudo foi feito por uma só pessoa…
Acho que nosso grande trunfo em produzir tantas canções bem resolvidas vem, primeiramente, do fato de sermos irmãos tão próximos. Paulo é três anos mais velho do que eu e somos muito unidos. Ele sempre procurou entender o que eu quis dizer, em cada uma das músicas que compus. Sabe da minha personalidade e das minhas emoções. Muitas vezes eu ficava horas tocando no piano e ele lá distante, só ouvindo a melodia, até que chegava e trazia as letras para ver o que eu achava. Em outras ocasiões, em um estalo, ele vinha com ideias praticamente definitiva. Então, acho que o fato de sermos, além de irmãos, dois caras que são tão amigos, nos deu essa vantagem de fazer coisas que parecem feitas por uma pessoa só.

Em seu primeiro álbum, aos 20 anos, você já surge escoltado por músicos e maestros de primeiro time. Como é que você se aproximou dessa turma?
Uma longa história, que começa por volta de meus 11 anos, quando estudei no colégio Santo Inácio e conheci o Edu Lobo. Éramos da mesma classe e amigos e, um belo dia, uns oito anos mais tarde, entrei em um ônibus em Ipanema e dei de cara com o Edu, que não via havia muito tempo. Nos reconhecemos, ele estava com um violão, e logo perguntei: “Pô, você agora está ligado em música, Edu?”. Ele disse: “Sim, na verdade sempre estive, meu pai é o Fernando Lobo, compositor, sou também muito amigo do Dori Caymmi e tocamos juntos”. Ele me perguntou: “Por que, Marcos? Você também está ligado em música?”. Disse a ele: “Minha vida é música, Edu. Minha família quer que eu seja advogado, mas eu bem sei que de advogado não tenho nada”. Ele ficou muito entusiasmado e propôs um encontro para tocarmos juntos. Trocamos telefones antes dele saltar e nos encontramos, dias depois, quando ele me apresentou ao Dori. Foi tudo perfeito: o mesmo papo e as mesmas intenções musicais. Fizemos um trio, que não chegou a ter nome, mas com ele tocamos em alguns programas de televisão, como os do Sérgio Porto, do próprio Fernando Lobo, pai do Edu, e um programa do Lúcio Alves, que era na TV Rio. Esse trio durou pouco, mas me abriu muitas possibilidades, porque o Dori e o Edu viviam nas rodas da bossa nova e comecei a frequentar esses mesmos ambientes. O primeiro convite foi uma reunião na casa do Ary Barroso, um pouco antes dele falecer. Lá estava toda a turma da bossa: Carlinhos Lyra, Roberto Menescal, Baden Powell, Ronaldo Bôscoli, Lúcio Rangel, uma turma da pesada, e confesso que fiquei muito inibido. A essa altura eu já tinha escrito seis ou sete músicas – seis das quais acabaria gravando em meu primeiro álbum, Samba Demais -, mas não tive coragem de mostrá-las, estava ali de tiete.

E quando é que veio essa coragem?
Só em um segundo encontro, na casa do Vinicius de Moraes, no Parque Guinle, bem no final da noite, é que tive coragem de pegar um violão e tocar minhas músicas, foi então que conheci um cara chamado Lula Freire, ele era letrista, super ligado em música, e tinha um belo apartamento em Ipanema, onde acontecia a maioria das reuniões da turma da bossa. Lula ouviu minhas músicas e me convidou a ir até lá para mostrá-las. Uma semana depois, ele marcou uma reunião e pediu que eu e o pessoal do Tamba Trio chegássemos um pouco antes para que eu mostrasse a eles Sonho de Maria. Terminei de tocar e eles me pediram a música. A noite ainda revelou outras boas surpresas. Foram chegando os outros convidados e conheci João Donato e Tom Jobim, que também adoraram minhas músicas. Uma noite belíssima. Dias depois, o Menescal resolveu me levar para conhecer Os Cariocas, que já era um grupo famoso, e mostrei a eles minhas seis músicas. Os Cariocas queriam gravar todas elas e o Menescal me chamou de lado e aconselhou: ‘Não faça isso, Marcos! Você está maluco?! Dê, no máximo, duas canções para cada artista’. Eles escolheram uma música minha com o Paulo Sergio, chamada Amor De Nada, e outra que eu tinha feito com o Edu, chamada Vamos Amar. Foram as duas primeiras músicas minhas gravadas por eles. Depois eles gravaram várias outras. Com isso, as portas realmente se abriram para mim.

Com Sylvia Telles, Tom Jobim e Roberto Menescal. Foto- Arquivo pessoal
Com Sylvia Telles, Tom Jobim e Roberto Menescal. Foto: Arquivo pessoal

E tudo isso aconteceu em 1962, às vésperas de lançar o Samba Demais?
Sim, em 1962. Tudo aconteceu muito rápido. O Menescal e uma cantora chamada Tita, cunhada do Edu, que até hoje é casada com o Edson Lobo, me incentivou a ir até a Odeon para mostrar minha músicas, porque eles estavam acolhendo muito bem aquela produção inicial da bossa, tinham contratado o João Gilberto, o Wilson Simonal fazia grande sucesso cantando bossa, Elizeth, Dóris Monteiro, Pery Ribeiro, todo mundo gravando pela Odeon e lá fui eu, acompanhado do Menescal e da Tita, para mostrar minhas músicas. Entrei no escritório dos diretores artísticos, entre eles o Milton Miranda, e o Simonal também estava presente. Muito intimidado, toquei seis músicas e, quando terminei, observei que eles estavam conversando miudinho. Um dos diretores olhou para mim e disse: “Olha, Marcos, ninguém vai gravar música tua aqui, não”. Pensei: “Me dei mal, não agradei”. Na sequência, ele emendou: “Ninguém vai gravar música tua aqui, porque quem vai fazer isso é você. Vamos imediatamente fazer um disco seu”. Saí dali contratado por cinco anos.

Você já conhecia o Eumir Deodato? Partiu de você o convite para ele escrever os arranjos de Samba Demais?
O Eumir entrou nessa história porque quem iria fazer os arranjos do disco seria o Tom Jobim, mas o Tom era muito lento, tinha uma coisa de ele ter que ir trabalhar no sítio dele e, com isso, ele demorava muito para produzir. Com essa expectativa de atraso, o Milton Miranda chegou para mim e disse: “Marcos, nosso prazo é curto e sei que com o Tom não vai dar certo, mas vou te apresentar um cara muito novo, da tua idade, que é um craque, ele toca com o Menescal e é um tremendo arranjador. Tenho certeza que vocês vão se entender muito bem. Fui à casa do Eumir e percebi logo de cara que tínhamos muito a ver. Eumir escreveu arranjos belíssimos para o disco e somos grandes amigos até hoje.

Samba Demais é muito ligado a temática inicial da bossa, bebe muito da tríade amor, sorriso e flor, mas já em O Cantor e Compositor, começam a surgir canções de protesto, como Gente e, ironicamente, uma canção que critica essa nova tomada de direções, A Resposta.
Quando lancei o Samba Demais, em 1963, vivíamos os últimos dias de Brasil democrático. Ainda havia aquele espírito de um Brasil moderno, herdado do Juscelino, e a expectativa de transformações ainda maiores com o Jango. Tudo acontecia de bonito no cinema, no teatro, na música, e eu, tipicamente bossa nova, só falava de coisas boas, do amor, da natureza, aquele espírito contemplativo, só que chegamos a 1964 e tudo isso mudou completamente. Essa transformação foi um baque para mim e para outros compositores, porque meu mundo era a música, o que eu queria eram acordes, notas, quando sentava ao piano ou empunhava um violão entrava em um mundo de sonhos, pleno de sons e emoções, onde só cabia a música, não pensava em outras questões, como o letrista. Quando chegou a ditadura começou a haver uma obrigação de posicionamento, porque o momento exigia isso. Nossa liberdade estava cerceada e a gente tinha, de alguma maneira, que combater aquilo tudo. No início, isso se tornou um grande problema para mim, pois havia essa espécie de obrigação, e quem não assumisse uma posição era tachado de alienado. Começou a haver certa divisão entre alienados – Menescal, Tom e outros ligados a bossa, que eram mais líricos – e outros compositores – Edu Lobo, Ruy Guerra, Geraldo Vandré – que eram os participantes, havia até o termo “canção de participação”. Essa divisão, e essa quase obrigação, fizeram a gente escrever A Resposta. Por que tem que se cantar a miséria? O povo já sofre com a fome e a gente ainda vai fazê-lo cantar a fome? O cara vive em frente ao mar, de costas para o morro, e vai ficar falando do morro? Quando passamos a frequentar encontros de artistas – não só de música, mas de teatro, de cinema – e entendemos a gravidade do momento, é que realmente concordamos com a necessidade de dizer tudo aquilo. Começavam a surgir as primeiras histórias de tortura, de desaparecimentos e mortes, e não dava para ficar a indiferente.

Então, A Resposta veio um pouco antes dessa tomada de consciência e acabou indo parar no mesmo álbum…
Sim, um pouco antes e, como o disco toma um certo tempo para ser concluído, acabei compondo coisas, como Gente, que diz: “Gente na vida que não deve dar / Porque nunca na vida sofreu por não ter“. Ambas estão no mesmo disco, e é engraçado, porque parece uma contradição. Pouco depois, fizemos também Terra de Ninguém, lançada com grande sucesso pela Elis Regina, em 1965. Em um primeiro momento, tomamos esse rumo da crítica social, mas depois, em outros trabalhos, enveredamos para uma crítica mais comportamental, como fizemos em Mustang Cor de Sangue, que tem uma carga muito consistente de crítica à sociedade industrial.

Nos Estados Undios, em visita ao compositor e maestro Henry Mancini. Foto- Arquivo pessoal
Nos Estados Undios, em visita ao compositor e maestro Henry Mancini. Foto: Arquivo pessoal

Há quem atribua à chegada da canção de protesto e à jovem guarda, muito rudimentares harmonicamente, uma antecipação precoce da perda do interesse pela bossa. Você concorda com essa análise?
Acho que foi algo inevitável, que tinha que acontecer, porque logo na sequência evoluímos para o tropicalismo, algo muito forte, e intimamente ligado a uma transformação de comportamento, de muito impacto cênico, com aquele aparato todo de cenografia, as roupas, as guitarras. O tropicalismo chega com um impacto que não havia na bossa nova, que era muito contemplativa, música suave, bonita, sem essa força de palco, você tem que entrar em um estado de tranquilidade para ouvir a bossa nova. Já o tropicalismo não, ele chegou para arrasar, chegou chutando a porta. O fato da turma da bossa começar a adotar letras de protesto não combinava com as intenções da bossa. Você pega o que o Vandré produziu e conclui que não tem nada a ver com bossa, mas pega uma música minha como Gente e, se tirar a letra, ela é um bossa nova, isso é inquestionável. Acho que o que fez a bossa perder prestígio foi uma coisa de espírito de época mesmo. Gente nova chegando com uma forte convergência de ideias. As intenções políticas das letras de protesto também pediam uma música mais veemente, e talvez a bossa nova não tivesse esse mesmo cunho. Com relação ao meu trabalho, posso dizer que tive grande influência da bossa, mas, mesmo antes de sua chegada, eu já tinha outros interesses: o baião, as marchinhas, o samba canção, o jazz, o rock, a música pop, a música negra norte-americana. Meu primeiro disco é estritamente bossa nova, sobre o impacto do João Gilberto, mas já no segundo disco, essas outras influências começam a aparecer.

Seu terceiro álbum ficou inacabado, foi interrompido para o lançamento do LP Braziliance, nos Estados Unidos, em decorrência do sucesso de Samba de Verão
O primeiro convite que tive para ir aos Estados Unidos foi em 1964. O Sergio Mendes queria que eu fosse com ele e a Wanda Sá e decidi não ir, porque ainda estava consolidando minha carreira por aqui. Foram ele, Wanda, Jorge Ben – que fez um sucesso estrondoso com Mas,Que Nada! e Chove, Chuva -, e a violonista Rosinha de Valença. No ano seguinte, o Sérgio me fez um novo convite, insistiu muito e acabei indo. Ele queria que eu ficasse e integrasse o grupo dele, o Brazil 65′, mas fui como convidado especial, dentro do show dele, e não quis ficar. Decidi voltar não só para retomar minha carreira no Brasil, mas também por uma enorme saudade daqui. Era muito garoto para ficar longe da minha família e dos meus amigos. Quando voltei, no início de 1966, tive boas surpresas, pois Samba de Verão e Preciso Aprender a Ser Só, de meu segundo disco, que estava recém-lançado, causaram grande impacto e ganhamos vários prêmios de música do ano. Decidi voltar para cá em um momento muito feliz,com todas essas boas novas.

Como é que o Walter Wanderley (organista brasileiro, ex-marido de Isaurinha Garcia, que fez carreira de grande sucesso nos Estados Unidos) decidiu gravar Samba de Verão pela Verve? Vocês já se conheciam?
Sim, eu já conhecia o Walter, pois vi muitos shows dele em São Paulo. Gostava muito do balanço dele, mas não sabia que ele tinha lançado a faixa nos Estados Unidos. Soube do enorme sucesso, tempos depois.

A propósito, você já tocava Hammond B-3 (modelo do instrumento tocado por Walter, presente em vários discos de Marcos) nesse período?
Não, eu comecei a tocar Hammond mais tarde, no Previsão do Tempo, em 1973.

Antes disso, no Samba 68′ e no Mustang Cor de Sangue, em 1969, você já escreve arranjos para Hammond, não?
Sim, você está certo! No Mustang e no Samba 68′ já tem Hammond. Um instrumento que eu adoro e o Walter era um craque do B-3. Gravei várias músicas com ele nos Estados Unidos e tocar um violão acompanhando aquele balanço incrível do Walter no órgão era demais. Uma formação de trio instrumental que só tocava música brasileira chegar aos primeiros lugares da Billboard e vender como ele vendeu foi realmente um grande feito para aquela época.

De volta ao Brasil, você começa a compor para esse terceiro disco que ficaria inacabado, mas o compacto duplo dele tem dois temas seus regravados por muita gente, Os Grilos e Batucada Surgiu.
Logo que voltei ao Brasil comecei a preparar meu terceiro disco. Fiz todas as bases, orquestrei, coloquei vozes em quatro faixas, registrei e lancei esse compacto duplo com Os GrilosBatucada SurgiuAmor é Chama e É preciso Cantar, só que com o estouro de Samba de Verão na versão do Walter, o Ray Gilbert, que era o empresário e letrista do Tom nos Estados Unidos, pediu a ele que nos apresentasse, porque ele estava ligadíssimo no que eu estava fazendo. Decidi seguir os passos do Tom e fui fazer os programas de TV americanos de costa à costa. A essa altura, Samba de Verão já estava sendo gravada por vários outros artistas, com letra em inglês, do Norman Gimble, o mesmo que verteu Garota de Ipanema para o Tom. A Odeon e o Milton Miranda foram muito legais comigo e me liberaram para partir novamente. Lembro do Milton dizendo “Vai embora, rapaz, tua hora é agora e você não pode perder isso!”. Interrompi o terceiro disco para gravarmos o Braziliance, um álbum instrumental, especialmente feito para o mercado americano – tinha que chegar lá fora com novidade. Gravamos no Rio e concluímos o álbum nos Estados Unidos. Fiquei um ano por lá e ainda recebi o convite da Verve para lançar outro disco, o Samba 68′, que fez grande sucesso, só que, mais uma vez, bateu aquela saudade enorme e insuportável do Brasil e decidi voltar.

Samba 68′ é muito é cultuado entre os álbuns de brasileiros na Verve, fez grande sucesso no mercado americano e europeu…
Esse disco se tornou um clássico da minha carreira. Teve uma importância muito grande naquele momento do mercado americano, mas também foi fundamental, anos mais tarde, para a redescoberta de meu trabalho com o público jovem da Europa, que passou a pesquisar e ir atrás de meus outros discos. A partir do Samba 68′ novamente se abriu um novo mercado na Europa para mim.

Esse álbum que acabou de ser redescoberto, a principal novidade da caixa, acabou sendo “engolido” pelo Braziliance e o Samba 68′?
Quando voltei para os Estados Unidos, com a repercussão do Braziliance, esse terceiro disco ficou esquecido. Voltei depois de ter feito o Samba 68′ ,e quando cheguei aqui a barra estava pesadíssima. Estávamos às vésperas do AI-5 e eu, morrendo de saudade, às vezes me pegava sozinho, angustiado, chorando só de pensar no Brasil. Decidi voltar mesmo assim. Logo que cheguei houve uma festa para me receber na casa do Tom, que convidou o Milton Nascimento especialmente para me apresentar a ele. Milton era meu fã e queria me conhecer. Ficamos muito amigos e, por dois anos, trabalhamos juntos, em estúdio e em shows. Reencontrei também o Edu Lobo, conheci o Novelli e o Ruy Guerra, e me reaproximei do Ronaldo Bastos, que já era meu amigo, de Friburgo. Fiz composições com os cinco, e todo esse novo contexto levou minha cabeça para um disco completamente diferente. A própria Odeon não forçou uma retomada. Viu que o momento era outro e acabei fazendo o Viola Enluarada, que foi marcado por grande força política. Esqueci completamente desse disco abandonado até o dia em que o Charles topou com ele nos arquivos da gravadora e decidiu recuperá-lo. Confesso que fiquei fascinado de ver aquilo que eu não tinha terminado virar um CD.

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Ao piano, nos anos 1960. Foto: Arquivo pessoa

As questões conceituais e musicais do Viola Enluaradaparecem chegar ao ápice em Mustang Cor de Sangue ou Corcel Cor de Mel…
Concordo. A partir do Mustang, além da força crescente nas letras do Paulo Sergio, minhas influências musicais começam a ficar ainda mais evidentes. O que seria o meu estilo nasce no Mustang. Nele, estão elementos que persigo até hoje. Em termos de letra, vivíamos o milagre econômico e o Paulo começou a migrar seu olhar para as transformações comportamentais dessa sociedade industrial que crescia por aqui com hábitos de consumo cada vez mais frenéticos. Mais adiante, ele escreveu coisas como “não confio em ninguém com mais de 30 anos”, provocações que não são mais, tão somente, políticas. Acho que, a partir do Mustang, ele foi ganhando ainda mais personalidade como letrista. Paulo sabia como poucos o que andava pela minha cabeça.

Nessas duas viagens aos Estados Unidos ele esteve contigo?
Não, ele ficou por aqui tratando das coisas dele. Paulo é aviador e sempre manteve essa paixão. Chegou a trabalhar na aviação comercial, por influência primeira de meu avô e, depois, de papai, ambos foram diretores da companhia Cruzeiro do Sul. Meu pai era advogado, mas por conta de sua paixão por aviação, acabou se especializando em direito aeronáutico. Um ambiente muito adequado para estimular o Paulo a se interessar por aviação. Ele pilotou, deu aulas, fez acrobacias, e até hoje voa de ultra-leve. Nesses períodos em que eu fiquei fora ele se dedicou ainda mais intensamente a aviação.

E você chegou a estudar Direito?
Até ingressei na faculdade, mas não completei nem sequer o primeiro ano. Queria dar essa alegria ao meu pai, mas a música falou mais alto. Apesar de papai também ser apaixonado por música, ele tinha certeza que financeiramente ela não me levaria a lugar nenhum. Na metade do primeiro ano de curso, fui convidado para tocar em São Paulo no Juão Sebastião Bar e fiquei louco, pois só tocavam craques por lá. O dono da casa, um grande sujeito que se chamava Paulo Cotrim, veio até o Rio exclusivamente para me convencer a fazer uma temporada no bar. O problema é que era uma longa temporada. Tocaria de quinta a domingo durante dois meses e, para fazer isso, teria que abandonar a faculdade. Paulo foi em casa, me fez essa proposta e, para desgosto de meu pai, resolvi aceitar. Minha mãe, que já sabia há muito tempo que eu não seria advogado coisíssima nenhuma, disse: “Paulo, não tem jeito, deixa o menino ir!”. Fui para São Paulo, fiz uma temporada e nunca mais voltei para a faculdade. Quando voltei ao Rio, passei a fazer shows no Beco das Garrafas e conclui que eu não tinha nada a ver com essa coisa de direito.

E como era o Beco nesses dias?
Incrível! No Little Club tocava a Elis; no Bottles, o Simonal. Meu show, no Barcará, reunia eu, Dóris Monteiro, Edison Machado, na bateria, e Sérgio Barroso, no contra-baixo. Eu tocava piano na maioria das músicas, em outras tocava violão e assumia o piano o Tenório Jr. Mais adiante houve duas mudanças: saiu o Tenório e entrou o Dom Salvador; depois saiu a Dóris para entrar a Leny Andrade! Um pessoal da pesada e um período sensacional da música feita ali. Fizemos esse show no Beco por um tempão.

Logo depois do Mustang você lançou o disco de 1970, um álbum bem mais arejado, aparentemente, sem grandes preocupações conceituais.
Gosto muito desse álbum de 1970, porque, musicalmente, abri muitas portas com ele. O disco tem participações do pessoal do Som Imaginário (grupo liderado por Zé Rodrix), que conheci logo na minha volta, e esse encontro me influenciou muito a experimentar outras sonoridades. Foi um momento muito interessante, de grande amadurecimento. O Garra e o Previsão do Tempo, que viriam logo depois, também têm essa característica forte de experimentação por conta da minha parceria com o Azymuth.

Você sempre deu muita liberdade para os seus músicos?
Gosto até hoje de experimentar coisa novas com pessoas que me identifico. A sonoridade trazida por outros é muito importante. Tanto é que compus, nesse álbum de 1970, o tema Suite Imaginária, como influência direta de meu convívio com o Som Imaginario. A aproximação com o O Terço também mudou direções, a característica forte do rock que eles tinham também me levou a outras possibilidades em Vento Sul. No caso do O Terço, foram eles que me procuraram. Eu ia pro Midem (festival francês de música, na Grécia), junto com a Maria Bethânia, eles sabiam disso e se ofereceram para ir com a gente, se dispondo inclusive a pagarem suas próprias passagens e despesas somente pelo interesse de me acompanhar. Pensei “por que não?” e cheguei a conclusão de que seria perfeito. Fizemos três músicas iniciais e acabamos tocando juntos no Vento Sul, de 1972. Um disco bem comunitário, bem hippie. Ficamos mais de dois meses em uma pequena vila de Búzios. Alugamos duas casas de pescadores e colocamos uma placa em frente a uma das delas, escrita “vento sul”, foi por isso que demos esse nome ao disco.

Depois disso, você passa a tocar com o Azymuth…
O Azymuth sempre teve muito a ver comigo. Sempre fui louco por Rhodes (clássico modelo de piano elétrico fabricado pela Fender) e o Bertrami (o líder do Azymuth, José Roberto Bertrami) também era. Conheci o trio em uma hora perfeita, porque eu estava tocando muito Rhodes e chamei o Bertrami para tocar Hammond e ARP (um dos primeiros modelos de sintetizador analógico) comigo no Previsão do Tempo. Havia muita afinidade entre a gente, tanto que logo depois o Azymuth passa a ser a minha banda. Viajamos muito juntos.

Você fez com eles outro álbum bastante cultuado, O Fabuloso Fittipaldi, a trilha do filme sobre o Emerson…
Essa trilha do Fittipaldi foi uma delícia de fazer. Foi daí que saiu o nome Azymuth. O filme foi dirigido pelo Roberto Farias e o Hector Babenco e não me lembro qual dos dois, mas sei que um deles insistiu muito para que eu usasse minha música Azymuth, que foi trilha de uma novela chamada Véu de Noiva – era o tema do Claudio Marzo, que fazia um piloto na novela. Fizemos uma nova versão, porque a abertura do filme era mais extensa e a trilha saiu pela Phillips. O produtor do disco foi o Armando Pittilgliani, que convidou essa moçada – o Bertrami, o Alex Malheiros, e o Ivan “Mamão” Conti – para gravar comigo. Eles já tocavam como um trio, mas ainda não tinham um nome. Além de gravar o disco com eles, o Bertrami também trabalhou comigo em alguns arranjos. Ele tinha um bom conhecimento de orquestração e foi tudo perfeito. Como eu era da Odeon e o álbum sairia pela Philips, não pude colocar meu nome como artista, somente como compositor. Na hora de dar um nome, ficou a dúvida “a quem vamos atribuir isso?”. O Armando foi quem sugeriu “que tal a gente colocar Conjunto Azymuth?”. Fiz essa música em parceria com o Novelli, que naturalmente não se importou em ceder o nome, e acabei me tornando essa espécie de padrinho do Azymuth.

O álbum de 1974, o último da caixa, fecha um ciclo de sua obra e vida, e é também um trabalho reflexivo e denso. Pouco depois, você parte de novo para os Estados Unidos e fica lá por mais de cinco anos…
Chamei o Tavito para fazer os arranjos vocais desse disco de 1974. Ele é um mestre nessa arte. Caímos muito nessas sonoridades grandiosas, mas ao mesmo tempo o disco tem mesmo essa densidade, porque sofríamos muito com a censura. Era uma época terrível, de ter de ir aos censores explicar música por música. Esse disco é triste porque realmente não havia como não falar daquelas coisas tristes. É um disco é carregado de melancolia. Logo depois decidi voltar para os Estados Unidos e fiquei lá por mais cinco anos. Esse disco tem elementos vibrantes, essa coisa meio épica dos vocais, e o considero muito marcante, um disco de despedida temporária do Brasil.

Com o irmão e letrista Paulo Sergio Valle, no Festival Midem, na Grécia, em 1972
Com o irmão e letrista Paulo Sergio Valle, no Festival Midem, na Grécia, em 1972

E como foi esse período mais longo afastado do País?

Cheguei aos Estados Unidos em uma condição bem diferente das outras vezes, quando fui a convite do Sérgio Mendes e por conta do sucesso de Samba de Verão. Desta vez fui por conta própria, muito chateado com todas essas coisas terríveis que aconteciam no Brasil. Não sabia ao certo quanto tempo iria ficar e, em princípio, fui para Nova York porque o Eumir Deodato morava lá e queria que eu ficasse próximo dele. Me hospedei em um hotel chamado Adams Hotel e até fiz uma música chamada Adams Hotel, que o Eumir acabou gravando no disco dele chamado First Cuckoo e fez grande sucesso. O Adams era um hotel bem antigo, próximo ao Central Park, um dos prediletos do Tom, e fiquei lá em um período que cheguei a ter vários encontros com o Tom. Íamos juntos ao Central Park bater papo. Tempos depois, aluguei um apartamento perto do Eumir, mas, embora eu adore Nova York, como tenho essa ligação forte com a natureza, sol e praia, vi que ali não era o meu lugar e decidi ir para Los Angeles, nessa base do vamos ver no qua vai dar.

E como é que você se aproximou da Sarah Vaughan?
Assim que cheguei a Los Angeles, a Sarah Vaughan estava gravando um disco chamado Songs of The Beatles, com arranjos e produção do Marty Paich, que foi o grande orquestrador do Sinatra, do Ray Charles e do Sammy Davis Jr., Marty fez vários discos que eu adorava e trabalhava agora nesse novo disco da Sarah com seu filho, David Paich. Os dois queriam um toque brasileiro em uma das faixas – que era Something, do George Harrison – e através do Sergio Mendes chegaram a mim. Logicamente achei o convite maravilhoso, voltei para casa, bolei um arranjo e fiz uma letra em português, muito fiel a original do Harrison, mas bem balançada, com aquele acento brasileiro. À primeira audição eles acharam a versão maravilhosa. Fiquei muito amigo da Sarah e ela quis gravar duas músicas minhas, Preciso Aprender a Ser Só e Seu Encanto, que virou The Face I Love. Sugeri a ela que gravasse um disco só com música brasileira, ela adorou a ideia e acabou fazendo dois: I Love Brazil e Brazilian Romance. Fui ficando por lá, e um belo dia conheci o pessoal do Chicago, grupo que eu gostava muito, porque tinha aquela mistura de rock, jazz, funk e latinidades. Meu amigo, Laudir de Oliveira, grande percussionista, tocava com eles e o pessoal da banda, sabendo que eu estava em Los Angeles, pediu ao Laudir que me apresentasse a eles. Fui visitá-los em um ensaio e levei o O Fabuloso Fittipaldi para eles ouvirem. Eles ficaram loucos pelo disco. Quando falei que tinha gravado tudo em quatro canais disseram que eu estava de sacanagem. Me pediram uma música e decidi escrever um novo tema com o Laudir, especialmente para eles. O Laudir não compunha e falei para ele: “Tú nunca fez música, tá mais do que na hora!”. Saiu Life is What It Is, que está no álbum Chicago 13. Uma mistura de samba com rock.

E como é que você conheceu o Leon Ware?
Logo em seguida o Robert Lamm, que é um dos grandes compositores do Chicago, fez letra para uma música minha chamada Love is a Simple Thing, e essa música foi mostrada para o Leon Ware, que adorou a gravação e também quis me conhecer. Fui a um estúdio encontrá-lo e eu, vidrado em música negra e no Marvin Gaye como sou, de repente estava ali ouvindo o maior parceiro musical do Marvin gravando aquela versão linda da minha música. Que maravilha! Conversamos depois da gravação e ele se revelou um grande fã do meu trabalho. Conhecia a maioria de minhas músicas e propôs que fizéssemos algo juntos. Fizemos várias músicas, gravadas pelo Leon, e cheguei a integrar o grupo dele. Só eu lá de branco lá no meio daquele monte de negrões e ele dizia para mim “Você pensa que você é branco, rapaz… de branco você tem só a pele e esse cabelo louro, mas você é negrão!”. Fui ficando por lá, sem pensar no Brasil, logo depois, o Airto Moreira me convidou para fazer os arranjos do disco dele Touching You… Touching Me. Quando me dei conta já havia se passado cinco anos. Foi então que decidi voltar para o Brasil e comecei a preparar o disco Vontade de Rever Você, que inclusive tem duas faixas acompanhadas pelo Chicago. Na verdade, o que aconteceu é que vim passar férias aquie, mas quando revi o Rio de Janeiro, em um fim de tarde absolutamente lindo no Arpoador, pensei “meu deus do céu, eu tenho que voltar para essa terra”. Paulo Sergio, percebendo isso, falou: “Cara, tá na hora de você voltar!”. Ele foi até a Som Livre e eles disseram: “Porra, se teu irmão voltar a gente contrata ele, imediatamente!”.

E a Som Livre não se deu nada mal, pois logo depois você fez um tremendo sucesso com Estrelar
Foi muito inusitado esse sucesso de Estrelar, uma das últimas músicas que fiz com o Leon, mas ela não tinha letra. Quando voltei e gravei o primeiro disco nem cheguei a mostrá-la. Chegou o momento de gravar o segundo e o Max Pierre, produtor da Som Livre, sugeriu convidar o Lincoln Olivetti para escrever os arranjos, pois ele era um grande fã do meu trabalho. Eu também adorava as coisas que o Lincoln tinha feito e topei na hora. Lembro que mostrei essa demo para os dois e a gravação era puro suingue, mas estava sem melodia definida, tinha apenas uma frase de guitarra que sugeria uma melodia. O Lincoln e o Max ficaram loucos com a base, e decidimos que dali sairia uma nova música. Resolvemos reproduzir aquilo e fizemos tudo exatamente igual ao arranjo que escrevi com o Leon, mas a questão é que o disco estava chegando ao fim e a letra não saia. Colocamos a gravação para tocar na maior altura, repetidas vezes, até que o Paulo Sergio veio me perguntar qual poderia ser um ponto de partida para a letra, e eu falei para ele “cara não sei, só sei que essa música tem uma energia absurda”. Ele teve um estalo e associou energia à ginástica, a exercícios físicos e à preocupação crescente das pessoas em manter a forma com a chegada do verão. Peguei a divisão daquela frase de guitarra, picotei para adequar a métrica e pronto! Era para ser só uma brincadeira com essa paranóia de ter que ficar forma, mas a música explodiu. Lembro que eu saia na rua e as crianças vinham falar comigo, senhoras vinham contar entusiasmadas: “Meu filho, graças a você criei coragem e fui fazer ginástica!”.

Depois desse grande sucesso Tempo da Gente é lançado em 1986 e você entra em outro longo hiato, só é encerrado quando você é redescoberto na Europa e é convidado para gravar, em Londres, o Nova Bossa Nova, em 1997…
Decidi dar esse tempo, mas no fim da década de 1980 alguns DJ’s de Londres, partindo do Samba 68, começaram a redescobrir minha música e foram atrás dos outros álbuns. Eu nem desconfiava, mas comecei a entrar no campo de interesses de uma turma nova que gostava de música dançante de qualidade, usavam como base para suas músicas Dave Brubeck, Stevie Wonder, Ray Charles. O negócio deles era a coisa suingada, mas com improviso e boas melodias. Estava por fora disso tudo até que, em 1994, a Joyce, que começou a fazer alguns shows na Europa, por consequência desse novo circuito que vinha sendo criado, começou a me contar essas histórias e achei maravilhoso. Lembro que ela disse: “Então, se você está gostando, Marcos, se prepare, porque os empresários vão te procurar. Seus discos já estão sendo até pirateados e entrando em compilações por aqui. Tenho certeza que vai se abrir um novo mercado para você. Inclusive, querem que a gente faça shows juntos. Vou te indicar uma gravadora, a Far Out Recordings, que é de um DJ chamado Joe Davis, um cara muito jovem. Se você puder encontrá-lo aí no Rio, vai gostar muito dele”. De fato as gravadoras começaram a me procurar e o Joe veio ao Brasil. Fui jantar com ele e gostei demais do jeito meio doido dele, Joe sabe de tudo o que eu fiz. Decidi assinar com a Far Out e estou lá, até hoje. Fui à Londres fazer meu primeiro show em um lugar badalado chamado Jazz Café e dei de cara com esse novo grupo de fãs que eu nem sequer imaginava que existia.

Por aqui não havia convites para você gravar?
Por aqui o mercado estava muito parado. O que eu tinha eram convites para fazer discos com convidados, regravando meus sucessos, e eu não estava nenhum pouco interessado nesse tipo de trabalho. Respeito muito quem o faça, mas não é a minha cara. Essa redescoberta veio em hora muito oportuna.

Em 1978, no período em que residiu em Los Angeles. Foto- Arquivo pessoal
Em 1978, no período em que residiu em Los Angeles. Foto: Arquivo pessoal

Com a democratização da internet e o acesso à música feita no mundo todo você certamente conquistou ainda mais fãs na última década…
Realmente, o interesse por meu trabalho deu um salto ainda maior nesses últimos anos. Quando tudo começou a acontecer, no final dos anos 1990, esse público de Londres acabou se espalhando por toda a Europa. Tenho muitos fãs na Itália, na França. E o pessoal, naturalmente, esperava que eu lançasse um disco novo. Fique pensando: “Mas será que eles vão gostar de um novo trabalho? Esse pessoal está apaixonado pela magia de um cara que está lá no passado”. Tive sorte, pois lancei o Nova Bossa Nova, o primeiro álbum dessa nova fase e ele fez um tremendo sucesso. De lá para cá meu público só aumentou.

E o que você pensa das consequências negativas dessa revolução da internet, como, por exemplo, a perda de direitos autorais?
Como quase tudo, a internet é uma questão que tem prós e contras. Os contras, naturalmente, estão ligados a incapacidade de se receber pela criação artística. Hoje, em termos de vendagem de disco, ninguém mais vai ficar rico. Essa fase já era. Mas o conceito do álbum ainda é muito importante, porque é ele que motiva os shows, os novos encontros musicais, e o download gratuito abre um leque infinito de divulgação. Algo muito difícil de fazer com tamanho alcance, se não fosse com os avanços da internet. A Mallu Magalhães, por exemplo, namorada do Marcelo Camelo, se beneficiou amplamente disso. O artista não depende mais da gravadora para chegar ao público. Eu, particularmente, assisti de perto a tudo isso. Veja o que aconteceu comigo na Europa, do final dos anos 1990 para cá… Teve de tudo: disco pirata, compilação pirata, download gratuito de toda minha obra, mas foi tudo isso que motivou a minha volta. É algo inevitável e positivo. É a linguagem desse pessoal mais jovem e desses novos tempos. Quem sofre mesmo é o cara que é apenas compositor ou é só letrista, que não ganha dinheiro no palco.

E como foi produzir Estática, esse álbum mais recente lançado junto com a caixa?
Gostei muito do resultado. O Estática também foi muito elogiado lá fora (o álbum foi lançado com o título Esphere pela Far Out em 2010). Chegou a entrar em algumas listas como um dos dez álbuns do ano, ganhou cinco estrelas do guia All Music e está sendo muito importante para consolidar essa minha retomada. Alguns críticos até exageraram, dizendo que há no Estática a força de um primeiro álbum. Engraçado porque também acabo sendo muito influenciado por esse processo de redescoberta. É algo que me norteia e me ajuda a continuar produzindo. Comparo o Estática com os álbuns da caixa, por exemplo, e vejo como há nele muitas semelhanças com as coisas que fiz no passado. Esse pessoal mais jovem fez por mim algo muito importante, me colocou em permanente contato com a minha própria música.

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