Eliza com grupo de mulheres no Vale do Rio Omo, no sul da Etiópia, em 2010. Foto: Arquivo pessoal
Eliza com grupo de mulheres no Vale do Rio Omo, no sul da Etiópia, em 2010. Foto: Arquivo pessoal

Eliza Capai é uma andarilha. Com o equipamento dentro de uma mochila, a cineasta costuma partir sozinha para lugares distantes, como os desertos do Mali ou o interior da Etiópia. Nesses trajetos, ela sai em busca de realidades distintas da sua. Porém, essas diferenças culturais não se traduzem em estranhamento ou oposição ao outro. Como uma exploradora às avessas, Eliza vai até longe para pensar o seu próprio entorno. “O que me move é esse processo de me compreender, não só a mim Eliza, mas a nós, a essa cultura brasileira, sul-americana que nos corta”, afirma a diretora.

Com dois longas-metragens, 15 curtas, reportagens e séries na bagagem, a diretora, de 37 anos, transita entre os campos do jornalismo e do cinema. Suas obras, boa parte delas diponível na internet, tratam de temas distintos, como a hidrelétrica de Belo Monte, o multiculturalismo e o programa Bolsa Família. Em comum, prevalece o tom politizado. “Eu entendo o mundo de forma engajada, não sei ser diferente”, comenta.

Nascida em 1979 no Rio de Janeiro, a cineasta mudou-se ainda criança para Vitória (ES), onde viveu até os 18 anos. Em entrevista à CULTURA!Brasileiros, Eliza con­ta que sempre se sentiu um “peixe fora d´água” na cidade capixaba. Após terminar a escola, ingressou no curso de Jornalismo da USP. A vinda para São Paulo foi uma ruptura: “Fiquei totalmente deslumbrada com o anonimato da metrópole. Foi ali que me dei conta de que Vitória era a capital do feminicídio. O nível de violência que havia contra a mulher era assustador. Em São Paulo, percebi que podia fazer muito mais coisas do que imaginava”.

Inicialmente, Eliza almejava trabalhar na mídia impressa. Porém, ao longo da faculdade, ela se afastou do texto: “Eu gostava mesmo de contar histórias, mas tinha sempre a questão do lead, de ter de me ater aos fatos. Isso me tolheu um pouco. E de repente, quando começaram as aulas de vídeo, eu pirei, me apaixonei mesmo. Também tive a sorte de que, no meu último ano da faculdade, chegaram a PD 150, uma câmera pequena, e a ilha digital. Com essas mudanças, ficou muito mais fácil para produzir sozinha”.

Desde então, a câmera se tornou um instrumento inseparável de Eliza em suas itinerâncias. Dias depois de se formar, a cineasta partiu para a Bolívia, iniciando uma série de viagens pela América Latina, onde produzia materiais que negociava na volta. Em 2008, vendeu uma série sobre imigração feminina na América Central para a Revista Fórum.

Esta viagem é considerada um divisor de águas pela artista. Durante nove meses, ela percorreu a distância do Panamá até Nova York. Nesse projeto, ela tratava da perspectiva feminina, tema que se tornou recorrente em sua obra, principalmente no filme Tão Longe é Aqui, que produziu um ano depois na África.

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Foto tirada em Cabo Verde, em 2010. Foto: Arquivo pessoal

Uma branca

O outro lado do Atlântico sempre atraiu Eliza, que queria entender um pouco mais sobre as raízes do Brasil. Aproveitando a Copa do Mundo da África do Sul, a diretora escreveu vários projetos de viagens ao continente. Um deles foi comprado pelo canal GNT. Mais uma vez a cineasta embarcava numa viagem longa sozinha: “Em janeiro de 2010, fui para a África com um projeto pautado pela diversidade. O quadro que fui fazer para a TV chamava Africana. O nome era uma piada porque as mulheres que apareciam não eram nenhum pouco parecidas. Eu escolhi países que têm línguas, religiões e costumes totalmente diferentes. Comecei no Marrocos, depois segui para Cabo Verde, Mali, Etiópia e terminei a viagem na África do Sul”.

O trajeto, que poderia ter durado oito semanas, se prolongou por sete meses. “O meu desejo era vivenciar aquela experiência intensamente, sem ter um objetivo. Desde o princípio, sabia que queria fazer algo mais autoral do que o quadro de TV, então fui registrando o meu cotidiano.” Foram essas gravações que originaram Tão Longe é Aqui, o primeiro longa-metragem de Eliza, lançado em 2013.

O filme mostra o encontro da cineasta com essas mulheres africanas de culturas distintas. Eliza filma o dia a dia dessas personagens enquanto reflete sobre as complexidades de ser mulher no mundo. Nesses diálogos, a cineasta tenta não usar as lentes do julgamento. Em suas falas, as próprias entrevistadas também quebram os estereótipos que a sociedade ocidental lhes impõe.

A jovem marroquina Assia, por exemplo, conta que se divorciou do marido, com quem havia se casado em uma união arranjada pelos pais. “Já faz três anos que me separei. Desde então, nunca tive nenhum namorado porque foi algo que me deixou marcada. Meu casamento foi como um estupro”, afirma a moça, numa das tantas cenas impactantes do longa-metragem.

Em outra sequência forte, a socióloga malinesa Awa Meite reflete sobre a poligamia e a mutilação genital das mulheres, hábitos presentes em algumas tribos africanas. “É apropriado que cada sociedade faça a sua própria análise. As situações são diferentes e eu acho que chegou o tempo em que as mulheres devem falar por si mesmas. A gente não pode emancipar as mulheres por elas. Assim como a gente não pode querer o desenvolvimento da África sem a participação dos africanos”, afirma a entrevistada.

Apenas essas falas já seriam suficientes para revelar a potência do filme. Porém, Eliza acrescenta mais uma camada de significado: a autocrítica. A cineasta conta que, durante as filmagens, fez várias descobertas “muito cruéis” sobre si mesma. “Para todos que se identificam com um pensamento de esquerda, é muito difícil se reconhecer como colonizador. É duro entender que os nossos antepassados foram escravocratas e que, de alguma forma, foram responsáveis pelas cenas mais horrorosas da história do País”.

A cineasta interage com crianças no norte da Etiópia, durante as filmagens do seu primeiro longa-metragem, Tão Longe é Aqui, lançado em 2013
A cineasta interage com crianças no norte da Etiópia, durante as filmagens do seu primeiro longa-metragem, Tão Longe é Aqui, lançado em 2013. Foto: Mathieu Verge

Eliza conta que, em alguns momentos da viagem, essa identificação com o colonizador ficou evidente. “Quando eu visitava alguns vilarejos, onde não havia luz elétrica, rádios ou mesmo viajantes, as pessoas que me viam achavam que eu era de países europeus, como França e Itália. E eu dizia: ‘Não, sou brasileira, venho de um país colonizado como o de vocês’. E as pessoas olhavam para a minha cara, riam e falavam que nós não éramos iguais.”

Em uma das cenas mais fortes do filme, Eliza pergunta para uma mulher de uma tribo de Dogon, no Mali: “Qual é a diferença entre nós?”. Com um sorriso irônico, a moça responde: “A diferença é que eu sou negra e você é branca”. A resposta, simples e não por isso menos arrasadora, persegue Eliza ao longo do filme. “Eu via um abismo ali, aquela mulher em específico levava horas para pegar a água e encontrar os alimentos que cozinharia. Eu vou ao supermercado, compro algo feito, esquento no meu forno e tenho água encanada.”Até então, Eliza nunca tinha permanecido por tanto tempo em locais tão pobres. Ela afirma que, nesses momentos, é muito fácil sentir raiva: “A revolta que eu tinha da pobreza, da submissão daquelas mulheres a sistemas supermachistas, eu muitas vezes endereçava a elas mesmas. Naquele momento, me deu uma crise muito grande, eu me vi racista, me vi preconceituosa, o inverso do que eu gostaria de ser. Eu me deparei com aquilo, era impossível não me deparar”, conta.

A cineasta queria expor esse sentimento, mostrando as suas fragilidades. Para conseguir isso, ela optou por uma narrativa em primeira pessoa, que mantivesse um tom intimista. O filme é endereçado a uma filha fictícia da diretora, para quem ela expressa os seus temores, dúvidas e preconceitos.

“A minha principal preocupação era não ser a branca que vai até a África falar como estão as coisas. Temia cair no lugar da arrogância cultural, criando um documentário cheio de verdades. Ao mesmo tempo, eu tive uma experiência muito verdadeira naqueles lugares, mas verdadeira em primeira pessoa do singular. A questão era como falar dessas descobertas sem adotar um tom universalizante. Daí surgiu o filme, dessa vontade de dividir todos esses aprendizados que tive sobre ser mulher, brasileira a partir do encontro com essas outras mulheres, que ora se pareciam comigo, ora eram totalmente opostas, me fazendo chegar a verdades ainda mais profundas.”

Registro feito no bairro de Talatona, em Luanda, Angola, durante a série investigativa para a Agência Pública, em 2015. Foto: Arquivo pessoal
Registro feito no bairro de Talatona, em Luanda, Angola, durante a série investigativa para a Agência Pública, em 2015. Foto: Arquivo pessoal

Outras verdades

Em 2015, Eliza retornou para a África num projeto financiado pela Agência Pública de Jornalismo Investigativo. Junto com a jornalista Natalia Viana, a diretora foi até Angola realizar uma série de reportagens. O projeto inicial era tratar dos interesses da Odebrecht, a primeira empresa brasileira a entrar em Angola e, no momento das filmagens, a maior empregadora privada da nação. No entanto, ao chegar ao país, a dupla soube dos 15 presos políticos que estavam encarcerados havia mais de um mês, acusados de conspiração contra o poder.

O projeto foi alterado e as duas decidiram falar da repressão política no país, que, desde 1979, era governado por José Eduardo dos Santos. Durante as investigações, as duas passaram a ser perseguidas por agentes do governo, que seguiram seus carros, registraram suas ações, prenderam as câmeras, dentre outras ações coercitivas que as levaram a sair do país sob a proteção da embaixada brasileira. Assim como em Tão Longe é Aqui, nessa série de vídeos Eliza adota a primeira pessoa, sem, no entanto, o recurso da ficção.

A cineasta conta que a experiência em Angola a fez refletir sobre o papel da imprensa. “Eu sempre evitei ser a jornalista que entra num país e interpreta mais do que teria direito. Porém, a reportagem em Angola foi uma virada na minha experiência profissional.” Eliza conta que o clima de paranoia em Angola remete ao de uma ditadura militar: “Nós decidimos fazer um documentário em primeira pessoa com um único objetivo: validar o que os nossos entrevistados alegavam. Porque a realidade deles era tão absurda que eu mesma, quando ouvi os relatos pela primeira vez, achei que eles estavam paranoicos. E eu só consegui entender de fato o que eles estavam alegando quando nós começamos a ser perseguidas”, afirma.

Logo depois de publicarem o material, as duas receberam várias mensagens de angolanos agradecendo pelo vídeo. Algumas pessoas afirmavam que usariam o vídeo como prova de perseguição política para pedirem asilo em outros países. A cineasta reforça que essa experiência lhe mostrou a força do jornalismo comprometido. “Percebi o poder que tem o olhar de fora. Em Angola, se alguém de lá fizer um documentário como esse, será perseguido. E eu não, retornei ao Brasil e minha vida voltou ao normal.”

Como comparação, ela cita a cobertura da imprensa estrangeira durante o processo de impeachment de Dilma Rousseff: “Foram os meios internacionais que chamaram a atenção para a gravidade da nossa situação política. Com suas reportagens de denúncia, a imprensa de fora obrigou a grande mídia nacional a reportar a realidade de outros pontos de vista menos simplistas”.

Eliza fotografa Julian Assange na Inglaterra, em 2011. Foto: Arquivo pessoal
Eliza fotografa Julian Assange na Inglaterra, em 2011. Foto: Lino Bocchini

Assange

Outro fato que impactou sua maneira de enxergar o jornalismo foi o encontro que teve, em 2011, com o fundador do WikiLeaks, Julian Assange. Inicialmente, Eliza foi convidada para participar de um projeto da Agência Pública em parceria com o WikiLeaks, que consistia em facilitar o acesso de vários países aos documentos das embaixadas dos EUA em seus territórios. Eliza desenvolveria uma série sobre esse processo. Para isso, foi até a casa onde Assange estava exilado, no norte da Inglaterra, junto com uma equipe de profissionais dispostos a divulgar as informações.

A série acabou não saindo do papel, mas a cineasta pôde conhecer um pouco mais sobre o trabalho da organização, além do próprio Assange, com quem realizou um vídeo. Intitulada What Does It Cost To Change The World? (Quanto Custa Mudar o Mundo?), a obra é uma paródia dos comerciais da Mastercard. No vídeo, a voz em off de Assange cita todos os seus gastos para sustentar o WikiLeaks, desde os processos legais até a manutenção dos servidores em 40 países. Ao final, ele aparece em frente às câmeras sorrindo e diz: “Assistir ao mundo mudar como resultado do seu trabalho? Não tem preço”.

Depois de conhecer Assange, a cineasta concorda que há de fato uma perseguição ao australiano. “Ele está muito tempo cercado dentro da embaixada, é muito claro que, com a sua prisão, as autoridades querem passar a mensagem de que não se deve tentar trazer à tona outras verdades. Ao mesmo tempo, fiquei muito impactada de ver como um pequeno grupo de pessoas pode fazer a diferença e divulgar informações essenciais.”

Para a cineasta, é justamente esse compromisso com os fatos que está fragilizado na imprensa brasileira. “Atualmente a mídia de esquerda reproduz o que os veículos de direita têm feito: julgar mais do que oferecer informações aos leitores.” Eliza também defende que a mídia alternativa deveria falar para um público mais amplo: “Precisamos entrar em outras bolhas e dialogar com o diferente. Eu tenho um desejo de falar para os não convertidos e isso obviamente é um desafio, principalmente quanto à linguagem. Temos de ter empatia com as pessoas das quais discordamos totalmente”, afirma a diretora. 

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Autorretrato feito em 2013, durante as filmagens do curta Severinas, em Guaribas, no sertão do Piau

O fim da escravidão

Uma das obras mais conhecidas de Eliza é o curta Severinas, filmado na cidade de Guaribas, no sertão do Piauí. Ela produziu a obra em 2013, logo após ler o livro Vozes do Bolsa Família, de Walquiria Rego e Alessandro Pinzani. Os autores estudaram o mecanismo que privilegia a entrega do benefício em dinheiro para as mulheres. Na obras, os dois constatam que a medida gerou mudanças grandes nos núcleos familiares, já que as mulheres passaram a controlar parte da renda da casa.

A cineasta ficou muito impressionada com o livro: “Achei a premissa encantadora, fiquei com vontade de ir até esses lugares e ver o que encontraria. Novamente consegui uma bolsa da Agência Pública e viajei para Guaribas, a cidade piloto do programa Fome Zero, onde passei duas semanas”.

De forma delicada, Eliza entrou na casa dessas mulheres para entender o seu cotidiano numa das cidades mais pobres do País:“Um dos aspectos mais impressionantes da viagem foi ouvir as mulheres da minha idade dizendo que tinham vivido a escravidão. E isso me marcou muito porque não eram pessoas centenárias que de fato presenciaram o fim do regime escravocrata. Eram mulheres de 30 anos”, diz.

Outra cena de destaque é a entrevista com um dos líderes locais, o professor da cidade. “Todos me falaram que eu deveria conversar com ele, que é tido como o homem mais culto da região. Eu pensei que na entrevista ele poderia me dar um panorama das mudanças que as diferentes gerações de mulheres vivenciavam. Porém, para a minha surpresa, quando eu fiz essa pergunta ele falou que não havia nada daquilo e que cada um devia se colocar no seu lugar, já que a mulher possuía qualidades inferiores às dos homens.”

Ao ouvir as palavras do professor, a cineasta ficou estarrecida. “Foi muito surpreendente perceber que naquela sociedade isso era verbalizável por um homem culto. E o irônico é que eu tenho certeza de que muitos dos meus amigos bacaninhas, em algum lugar deles, também pensam isso. Só que, na bolha onde eu circulo, se isso for verbalizado, vai pegar muito mal e todo mundo vai cair em cima. E naquele lugar isso era a verdade, era correto falar dessa forma. E isso me fez entender melhor ainda aquelas mulheres da minha idade que viviam ali”, afirma.

No entanto, ao conversar com as meninas da cidade, Eliza teve uma surpresa agradável. Ao contrário das mães que associavam o sucesso a ter um bom marido, elas apresentavam um discurso diferente. “Todas, sem exceção, me responderam que não queriam casar ou ter filhos, mas trabalhar para garantir o seu próprio sustento. Eu me arrepio toda vez que lembro disso, porque ali eu vi a transformação. É fantástico que um programa tenha conseguido mudar de modo tão profundo a forma dessas meninas viverem e pensarem o próprio mundo”, ressalta a cineasta.

Diante das mudanças na política nacional, Eliza se sente angustiada com os rumos do Bolsa Família. “Recentemente, o filme foi reexibido e tudo que eu conseguia pensar era que essas políticas de inclusão estão ameaçadas. Saí da sessão com a consciência de que uma política que demora anos para ser construída pode ser apagada muito rapidamente. Ao mesmo tempo, me nego a acreditar que as transformações regredirão. Tento pensar que é um processo irreversível.”

A presença feminina, por sinal, é um traço comum de grande parte das produções da cineasta. Ela ressalta que, em pleno século XXI, as mulheres ainda têm menos espaço nos meios de comunicação e no cinema em especial: “Tenho um desejo muito grande de amplificar essas vozes. Acho que encontrar essas mulheres, dar esse espaço de imagem e fala a elas é, de certa forma, fazer a pequena justiça que me cabe. Isso me dá um prazer profissional enorme”, afirma.

Nas viagens que faz sozinha, a própria cineasta precisa lidar com o machismo, sentindo-se vulnerável em muitas situações. Mas ela garante que essa situação de aparente fragilidade também pode ajudá-la a se aproximar das pessoas.

“Geralmente, por ser mulher, não sou vista como uma ameaça. Pelo con­trário, as pessoas se sentem mais à vontade para falar das suas vidas. E talvez por eu aceitar entrar na casa delas sozinha, me colocando em situações que poderiam ser de risco, cria-se uma empatia entre nós e uma entrega por parte do entrevistado.”

Na foto, com o jornalista Bruno Wies, durante as filmagens de O Jabuti e a Anta. Foto: Carol Quintanilha
Na foto, com o jornalista Bruno Wies, durante as filmagens de O Jabuti e a Anta. Foto: Carol Quintanilha

 

Capitalismo selvagem

Em um dos seus últimos projetos, Eliza trata das disputas em torno da Amazônia. A ideia surgiu em 2014, quando a cineasta foi contratada pelo Greenpeace para fazer a série Linhas, sobre os diferentes modelos de energia. Ela conta que, assim que a equipe de filmagem se deparou com Belo Monte, o impacto foi imediato: “Nenhum de nós tinha vivenciado uma catástrofe tão escancarada como a que estava acontecendo e está acontecendo em Belo Monte”, afirma.

Depois dessa experiência, Eliza decidiu fazer o longa-metragem O Jabuti e a Anta, já exibido em festivais em 2016. O filme, que é narrado pela atriz Letícia Sabatella e coproduzido pelo Greenpeace, trata dos impactos do modelo de geração de energia baseado no uso de hidrelétricas. A cineasta afirma que, ao longo das filmagens, sentia “um amor profundo pelo rio Xingu e uma angústia de saber que tudo aquilo tinha prazo de validade”.

No documentário, a diretora entrevista as pessoas das comunidades ribeirinhas que tiveram seus modos de vida totalmente alterados pela construção de hidrelétricas. Numa das sequências mais emblemáticas, uma das moradoras se revolta com a situação: “Tenho muito carinho por essa terra onde moro. E agora, de repente, por conta das barragens, vou ter que sair daqui. Ontem eu tinha casa, hoje não tenho mais. Isso dói muito.Poxa a gente não é nada, a ponto de você ter que dar o que é seu pra outras pessoas”.

A partir de depoimentos fortes como este, o longa-metragem trata dos avanços do capitalismo e dos movimentos de resistência por parte das comunidades. Em determinado momento do filme, a narradora comenta: “A sensação primeira é que o dinheiro aqui tentava comprar tudo, até os estilos de vida, até as vidas. Índios com lanchas, ribeirinhos com apartamentos, parecia tudo errado”.

A narrativa em primeira pessoa, por sinal, foi uma escolha da diretora para revelar os dilemas de quem está plenamente inserido no sistema de consumo. “É muito fácil aderir à campanha contra Belo Monte, fazer pressão para que se investigue o caso de Mariana. O difícil é não comprar um celular ou, no meu caso, não trocar de equipamento quando sai uma câmera melhor. Parece que são coisas diferentes, mas a viagem foi mostrando que era tudo a mesma coisa. Enquanto não relacionarmos essas grandes empresas que promovem genocídios e desastres ambientais com os nossos próprios estilos de vida, Belos Montes continuarão sendo construídas, mineradoras continuarão operando e grandes indústrias continuarão fabricando coisas com trabalho escravo, enquanto nós consumimos.”

Foto: Carol Quintanilha
Eliza aproveitando rio na Amazônia. Foto: Carol Quintanilha

Ao contrário da maioria das suas produções, O Jabuti e a Anta será exibido no circuito comercial. A cineasta conta que está em fase de negociação com uma distribuidora, que ainda não pode revelar. Eliza optou por essa estratégia para atingir um número maior de pessoas: “No atual momento, com a quantidade de produções audiovisuais que entram na rede, não basta apenas disponibilizar na Internet, é preciso fazer com que o público saiba que o filme está lá”, afirma.

A diretora pontua as contradições de lançar o longa-metragem no mercado: “O Jabuti e a Anta é uma obra crítica ao sistema capitalista, principalmente os modelos energéticos. Inserir esse filme numa lógica de mercado me parece um pouco complicado. Ao mesmo tempo, é importante alcançar um público maior. Torço então para que o filme tenha uma boa carreira nos cinemas, chegue ao Netflix e seja muito assistido. Mas que também seja exibido nas ocupações das escolas e esteja disponível para qualquer comunidade que queira fortalecer sua autoestima”, afirma.

Eliza faz parte de uma nova geração de cineastas que não dependem necessariamente de incentivos públicos para produzir seus trabalhos. Os filmes que a diretora lançou até agora são independentes, tendo contado com financiamento coletivo ou o suporte de instituições como o Greenpeace e a Agência Pública de Jornalismo.

A cineasta diz que é impressionante a quantidade de boas produções brasileiras que são lançadas por ano. Ela cita Era o Hotel Cambridge, de Eliane Caffé, e Martírio, de Vincent Carelli, como produções recentes que a tocaram muito. “São filmes muito potentes que só conseguiram ser realizados a partir de moldes alternativos de financiamento. Em paralelo, temos uma transformação tecnológica que impactou muito o audiovisual. Faz um tempo que toda a minha produtora cabe dentro da minha mochila. Essa mobilidade, sem dúvida, gerou uma facilidade de produzir que não havia anteriormente.”

Credit: Paulo Pereira
Filmando na Baixada Fluminense (RJ), em 2012. Foto: Paulo Pereira

Ocupações

Sempre interessada em temas politizados, Eliza passou o último ano produzindo o filme Resistência. O longa-metragem, que ainda não tem previsão de lançamento, tem como pano de fundo os meses do governo interino de Michel Temer. Mais uma vez se utilizando da narrativa em primeira pessoa, o documentário reflete sobre a política nacional a partir das experiências das ocupações. A diretora foi até alguns prédios ocupados, como a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo e o Ministério da Cultura no Rio, para conversar com as pessoas que ali estavam

“Queria filmar esses indivíduos co­­­muns que estavam na resistência, entendendo a importância do coletivo e a forma da ocupação como um método de chamar a atenção para as suas pautas. Todas as ocupações em que entrei tinham discussões muito fortes sobre a questão de gênero, o racismo, a perifeira, isso costurava todas elas.”

Assim como Eliza, muitos outros cineastas produzem documentários que discutem, de maneiras distintas, a atual crise política do País. Anna Muylaert, Petra Costa e Adirley Queirós são alguns deles. Para a jornalista, esses diversos olhares são imprescindíveis: “Não temos ideia de quais serão os rumos da nossa política, mas sabemos que a história é escrita pelos vencedores. Caso os vencedores continuem sendo essas pessoas que tomaram o poder, temos um grande problema. Nesse sentido, nós cineastas estamos construindo outros pontos de vista que certamente ajudarão a reconstruir a narrativa desse momento histórico”.


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