momento histórico Em 17 de junho, os protestos contra o aumento das tarifas de ônibus aconteceram em várias cidades do País. Foto: Camila Picolo

Por Maria Victoria Benevides*

“Foi bonita a festa, pá!” Para os jovens que não a viveram e para os “coroas” esquecidos – e hoje temerosos ou entusiasmados com a mobilização iniciada pelo Passe Livre –, vale a pena lembrar a luta política contra o regime civil-militar instalado com o golpe de 1964. Boa parte da oposição se organizava através de movimentos sociais, organizações de base, sindicatos, igrejas, imprensa, associações profissionais e culturais, universidades, meio artístico, entidades de direitos humanos, partidos, abrangendo um amplo arco das esquerdas aos liberais, ambos de vários matizes. Pela primeira vez em nossa história, tivemos uma efetiva participação popular no processo constituinte (plenários, comitês locais, audiências públicas, milhões de emendas populares, manifestações), que desembocou na Constituição vigente. E essa Carta acolheu instrumentos de democracia direta, agora legitimamente evocados.

Quero chamar a atenção dos atuais manifestantes, dos quais muitos expressam certo “nojo” pela política (sobretudo devido aos partidos), para o fato de que, embora aquela árdua luta pela democratização, principalmente depois da Anistia, tenha se dado em um momento de transição da ditadura para o Estado de Direito, em vias de uma ruptura institucional, não se renegou o caminho necessário da política, com clareza dos objetivos e dos meios. No caso específico da Constituinte, o objetivo era participar do processo decisório, de forma organizada e com instrumentos adequados e eficazes, para não dar uma carta branca para os legisladores. E isso foi feito, haja vista, entre outros, o capítulo avançado sobre direitos sociais. É evidente que as garantias desses direitos ainda são precárias, mas o passo decisivo foi dado e a luta continua. Democracia é processo, é conflito, é direito da maioria com respeito às minorias e à diversidade, é participação, é soberania popular no contexto das leis legitimamente elaboradas.

A mobilização de hoje quer, com toda a razão, tudo a que tem direito: transporte, saúde, educação, moradia, segurança… E é contra tudo que identifica como a política dos partidos, dos poderes constituídos, da corrupção “generalizada”. Mas é claro que esse povo nas ruas está fazendo política – o que é bom –, mas está perdendo o rumo e repudiando mediações políticas – o que é perigoso. Daí a necessidade imperiosa de refletirmos sobre aquilo com que nós, cientistas sociais e juristas, podemos contribuir.

Depois de dias de perplexidade, a presidenta Dilma saiu da defensiva e retomou a liderança política – o que é bom – e vem a público prometer reforma no sistema de representação e apresentar outras propostas ousadas e polêmicas – o que exige ampla discussão. A proposta inicial, de debater com a sociedade uma Assembleia Constituinte para um tema específico, é um contrassenso. O poder constituinte originário é soberano: pode tudo, a começar por revogar a Constituição vigente. A convocação de um plebiscito para aprovar tal “constituinte temática” fica, pois, comprometida. Perante as dificuldades jurídicas, o próprio governo logo indicou que esse não era um bom caminho. A reforma política é necessária e pode ser feita por mudanças na lei partidária e eleitoral. É saudável consultar a vontade do povo. Mas não é preciso mexer daquela forma na Constituição.  No entanto, não há dúvidas de que a presidenta abriu um caminho promissor para enfrentar duas questões cruciais neste momento de crise: a reforma política, sempre chamada de “a mãe das reformas” e nunca decidida; e o recurso aos instrumentos constitucionais para a participação direta do povo, a começar pelas consultas populares. 

Quanto a isso, não será preciso inventar a roda. Já existe um considerável debate, na academia, no meio jurídico e parlamentar, sobre o tema. Já tivemos referendos nacionais e consultas locais. Vários projetos podem ser desengavetados no Congresso.   

Desde a Campanha Nacional em Defesa da República e da Democracia, iniciada pela OAB, em 2004, com apoio de várias entidades, estão atualmente em tramitação propostas que versam sobre mecanismos de democracia direta, não como “usurpação” do poder Legislativo, mas como aperfeiçoamento da democracia representativa. Entre essas destaco: 1. Emenda constitucional sobre referendo revocatório de mandatos eletivos ou recall (recentemente defendido pelo ex-ministro Rubens Ricupero) no Senado, no 73/2005; 2. Projeto de Lei sobre plebiscito, referendo e iniciativa popular, também no Senado, no 01/2006; 3. Proposta de emenda constitucional sobre revisão da Constituição, atualmente em deliberação no Conselho Federal da OAB. Aliás, o caminho mais útil para acelerar a decisão seria levar a voto o projeto de lei no 4.718 que está na Câmara por iniciativa da Comissão de Legislação Participativa, com o constante estímulo da deputada Luiza Erundina. Tal projeto, como o que está no Senado há menos tempo, objetiva tornar viável o recurso a consultas populares e à iniciativa legislativa, a fim de corrigir o enfoque extremamente rígido da regulamentação de 1997, que mais bloqueia do que incentiva a participação popular.    

O povo não se acomodou deitado no “berço esplêndido” e se levantou, como em vários outros momentos de nossa história. Aos 70 anos – idade da “juventude acumulada” – participei de quase todos. Estou convencida de que essa mobilização de hoje, por mais heterogênea que seja, pode favorecer o exercício da cidadania ativa democrática, assim como alcançar respostas positivas dos governantes. Mas pode também abrir caminho para saídas autoritárias e elitistas.

Fora da política não há salvação. Só a violência.


*Socióloga e professora titular da USP


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