*Por Gustavo von Ha
Enquanto artista sempre me interessei pelas coisas que estão à margem das narrativas hegemônicas, como também pelas facetas mais ocultas de personagens míticos ao longo da história. Tarsila do Amaral foi um destes personagens nos quais me detive e investiguei para desenvolver o trabalho Projeto Tarsila, que comecei em 2009 (o expressionismo abstrato embalado pelo MoMA também foi assunto de outra investigação que fiz para uma exposição no MAC USP em 2016).
Tarsila do Amaral: inventando a arte moderna no Brasil [Tarsila do Amaral: Inventing Modern Art in Brazil], primeira exposição dedicada à artista nos Estados Unidos, acontece agora no MoMA, em Nova York, tendo antes passado pelo Art Institute of Chicago.
O MoMA expõe, não coincidentemente, um recorte de sua obra consagrada pela crítica e sedimentada pela história da arte brasileira. A exposição concentra-se na década de 1920, focando nos primeiros anos de produção da artista, quando ela transitava no mundo das artes de São Paulo e Paris, reunindo mais de 100 trabalhos, entre pinturas, desenhos e documentos, incluindo obras icônicas e interligadas como A Negra (1924), Abaporu (1928) e Antropofagia (1929).
Logo no hall de entrada da exposição, fora do espaço expositivo propriamente dito, dentro de um nicho, está a tela A Cuca, obra que representa uma personagem típica do folclore brasileiro, eternizada por Monteiro Lobato em suas histórias do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Mas antes disso, a origem desta figura está nas lendas portuguesas, tradição que foi trazida para o Brasil durante a colonização. Tarsila produziu esta tela no começo de 1924 e escreveu à sua filha dizendo que estava pintando algo “bem brasileiro”, já anunciando seus interesses pela identidade nacional e pela cultura brasileira dita genuína, não ditada pelos costumes e valores europeus, que seriam desdobrados em sua fase Antropofágica. Nesse sentido, A Cuca pode ser considerada como o prenúncio da sua fase Antropofágica, é o “olhar de fora” fitando a tela A Negra que está na parede de frente para a entrada dentro do espaço expositivo.
Tarsila do Amaral e a Antropofagia são dois temas completamente imbricados um no outro, dado que esse movimento intelectual surgiu formalmente em 1928 com o Manifesto Antropófago, escrito por Oswald de Andrade, então marido de Tarsila, justamente após ele entrar em contato com a tela Abaporu. Tarsila em entrevista para Revista Veja, de 23 de fevereiro de 1972, comenta esse curioso episódio do primeiro contato com a tela Abaporu que entrelaçou a sua própria história com o surgimento do Movimento Antropofágico: “(…) o Oswald disse: ‘isso é como uma coisa como se fosse um selvagem, uma coisa do mato’ (…). Aí eu quis dar um nome selvagem também ao quadro, porque eu tinha um dicionário de Montoia, um padre jesuíta que dava tudo. Para dizer homem, por exemplo, na língua dos índios era Abá. Eu queria dizer homem antropófago, folheei o dicionário todo e não encontrei, só nas últimas páginas tinha uma porção de nomes e vi Puru e quando eu li dizia homem que come carne humana, então achei, ah, como vai ficar bem, Aba-Puru. E ficou com esse nome (…). Todos começaram a dizer que o Oswald é que tinha feito o Aba-Puru e criado o movimento antropofágico. Ele aceitou que dissessem que era de autoria dele, achou interessante.”
O conceito chave do manifesto Antropofágico vai justamente de encontro com a gênesis do nome criado por Tarsila, ao passo que recuperava a mitologia de indígenas brasileiros que comiam seus inimigos, não como uma forma de barbárie, mas sim como um ato de inteligência, justamente por acreditarem estar assimilando as qualidades de seus oponentes. Nesse sentido, Antropofagia é uma forma de canibalismo cultural em que os brasileiros consomem outras culturas (europeias, indígenas e afro-brasileiras e se atualizarmos essa questão poderíamos incluir a estadunidense também) para criarem uma identidade artística e cultural própria, transformando o produto importado em exportável.
A Antropofagia foi uma proposta radical para a época e consolidou o modernismo brasileiro no campo internacional, porém a maioria de seus defensores e articuladores eram pessoas brancas da elite urbana – aquela que consumia a cultura europeia de modo explícito, mas que passou a se interessar também pelo consumo da cultura indígena e afro-brasileira, o que nos leva a pensar sobre a existência de uma linha tênue que poderia separar a Antropofagia da apropriação cultural.
Uma pintura polêmica de Tarsila do Amaral, que esbarra nas dúvidas aqui suscitadas sobre a apropriação cultural é, sem dúvida, A negra, realizada em 1923. A tela, feita oito anos antes da artista viajar para a União Soviética e se declarar comunista, retrata uma mulher que trabalhou na fazenda da família da artista e que provavelmente nasceu no período da escravidão: representada com traços estereotipados e palheta de cor tipicamente brasileira. A obra aponta ao mesmo tempo para questões que seriam desenvolvidas no decorrer da carreira da artista, como também remete ao passado de Tarsila, que apesar de ser filha de um homem abolicionista, nasceu em uma família da elite agrária paulista, que como muitas outras, desenvolveram-se financeiramente aos custos do trabalho escravo. Vale lembrar que o Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão, em 1888.
A ausência de textos sobre A Negra pelos principais críticos modernistas, como Sérgio Milliet e Oswald de Andrade, reforça a análise do curador Paulo Herkenhoff, que chamou a atenção para o fato de esta pintura ser uma produção mais voltada para o primitivismo no contexto francês do que uma referência a uma figura “nacional”, no contexto de um modernismo que ainda estava engatinhando no Brasil.
Estas percepções, opiniões e constatações acerca da pintura A Negra lançam uma questão sobre as narrativas que são construídas em torno da obra de Tarsila do Amaral, quase sempre atreladas a um pensamento formal do Modernismo, interessado em uma evolução estilística da artista e não necessariamente em facetas mais politizadas ou que possam fugir do cânone moderno. No entanto, a mostra no MoMA se calca na primeira abordagem, formalista, deixando lacunas na trajetória artística de Tarsila, justamente por destacar mais esses aspectos estilísticos, ignorando sua produção tardia, costumeiramente ignorada pela crítica e pelos historiadores, o que tira a possibilidade de se comparar o que a artista produziu antes e depois em sua trajetória. Curioso lembrar que no final dos 1960, já vivendo sozinha e distante do meio artístico, Tarsila fez releituras de A Negra, nos levando a pensar para onde seu trabalho estava apontando.
Revelando a constante disputa teórica sobre em qual momento se deu o início do movimento moderno no Brasil, o curador da exposição no MoMA, o venezuelano Luis Pérez-Oramas, argumenta em seu texto do catálogo da mostra que o Modernismo no Brasil não surgiu nem antes e nem durante a Semana de Arte de 1922, tendo surgido anos mais tarde, pois a modernidade, segundo ele, consiste em coisas que vão muito além de uma escaramuça elitista. E diz: “O ensaio presente não se propõe a resolver a questão do que a modernidade era ou não era no Brasil, mas examina uma artista, Tarsila – cujo trabalho e personalidade artística estão inextricavelmente ligados ao destino do projeto moderno do Brasil e a imagem dessa modernidade”.
Mas o desejo pelo modernismo começou muito antes, alguns historiadores apontam inclusive para o final do século XIX. Muitos desses artistas (várias mulheres, vale pesquisar) desapareceram, não se legitimaram nesse processo modernista. Alguns eventos antecederam o Modernismo Brasileiro, como a exposição de Lasar Segall, em 1913, que já flertava com as vanguardas alemãs. Entretanto, será Anita Malfatti, que depois foi praticamente apagada pela história, que em 1917, recém-chegada da Europa, abriu as portas para as vanguardas artísticas no Brasil com sua exposição que é considerada um marco na história da arte moderna brasileira e o “estopim” da Semana de Arte Moderna de 1922, como aponta o historiador Mário da Silva Brito.
Tarsila não inventou a arte moderna no Brasil, mas foi, Segundo Aracy Amaral, a “pioneira de um estilo modernista brasileiro”. O título dessa exposição “Tarsila do Amaral: inventando a arte moderna no Brasil”, diz muito sobre como o MoMA se apropria de narrativas da América Latina recriando narrativas históricas e definindo os cânones ao longo do século XX até os dias de hoje, como defende a historiadora Ana Avelar em seu livro A raiz emocional, de 2014. Desta forma, me pergunto se o MoMA, com esta exposição da obra de Tarsila, não estaria consumindo nossa cultura como um antropófago.
Mario de Andrade desempenhou um papel fundamental no processo de legitimação da sua obra. Ele basicamente indicava através de cartas quais caminhos ela deveria seguir, ele defendia que era necessário manter a figura, manter os elementos da brasilidade como afirmação da arte brasileira lá fora, e essa preocupação em imprimir uma identidade nacional na produção artística brasileira permanece até os dias de hoje, ressoando a declaração feita por Tarsila, em 1923: “Eu quero ser uma pintora do meu país”.
Outro fator de legitimação sempre utilizado com Tarsila é ressaltar sua formação na Europa, na Académie Julian em Paris, com nomes como André Lhote, Albert Gleizes e, sobretudo, Fernand Léger, sempre apontado como um mestre da artista, inclusive no catálogo da exposição no MoMA. Porém, Tarsila, na mesma entrevista para Revista Veja, afirmou o contrário: “Eu gostava muito da obra dele, fui muito amiga dele, mas não frequentei o atelier do Léger, eu era amiga da mulher dele também, depois até inventaram que ele tinha desenhado brincos para mim, etc., imagine! Eu me inspirei em São Paulo mesmo, na sociedade fabril e foi uma novidade naquele tempo, no Brasil, o que eu fiz.”
Nesse sentido, ganha força a ideia de que o modernismo brasileiro deve ser entendido a partir de sua própria história e de uma perspectiva independente, que leve em conta os múltiplos atores e fatores que o configuraram, fugindo de narrativas totalizadoras e reducionistas. Essa discussão deve ser ampliada e atualizada para entendermos como a leitura da obra de Tarsila do Amaral e do modernismo brasileiro podem ter mudado ao longo de quase um século. Mas será que a abordagem do MoMA ao longo da história se atualiza? Então, o que de fato significa a Tarsila no MoMA hoje?
*Gustavo von Ha é artista plástico. Além de diversas exposições no Brasil, já teve mostras no Japão, na Alemanha, na França, dentre outros. Seus trabalhos estão presentes em coleções privadas e públicas, como a Pinacoteca do Estado de São Paulo, o Museu de Arte de Rio e Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo.