“No meu trabalho, na minha vida de artista, sou tão fascinada pela imobilidade da fotografia quanto pelo movimento do cinema”, dizia Agnès Varda. O deslizamento entre o instante fotográfico e o fluxo fílmico, fundamental em sua obra, é um dos focos centrais da exposição que abre no próximo dia 29 de novembro no Instituto Moreira Salles (IMS), como parte da programação da Temporada França-Brasil. Reunindo 200 fotografias – muitas delas inéditas –, a iniciativa não só resgata a Varda fotógrafa, um lado menos conhecido da consagrada cineasta, mas também mostra como sua produção está conectada com as questões contemporâneas, como feminismo, combate ao racismo e defesa dos direitos civis. “Ela se interessa pelas possibilidades artísticas da fotografia”, afirma João Fernandes, diretor artístico do IMS e curador da exposição ao lado de Rosalie Varda, filha e parceira de Agnès.

Varda fotografou muito e muito bem. Além de atestar a importância da fotografia como linguagem seminal em sua trajetória e pontuar momentos importantes de sua biografia – como as viagens à China, Cuba e Estados Unidos –, a mostra evidencia a aguda sensibilidade com que ela registra movimentos revolucionários fundamentais da segunda metade do século 20. “Ela nunca é afetada pela retórica, as imagens ganham uma vivacidade que lhes dá emoção e atualidade. Porque as utopias às vezes envelhecem, mas os sonhos da Agnès nunca morreram”, complementa Fernandes.

Suas fotografias dão a impressão de que ela está sempre atenta às pessoas, ao cotidiano, “articulando política e ternura”, como escreve Horrana de Kássia Santoz, curadora assistente no texto-carta que publica no catálogo que acompanha a exposição. Mesmo sendo, como sintetiza Horrana, “uma forma de pensamento que atravessa tudo”, a fotografia tem um papel central e pouco conhecido na formação da jovem Varda: é seu primeiro meio de expressão. É a linguagem – e a profissão – que decide adotar quando ainda procurava um meio de ganhar a vida. Fez um curso profissionalizante, observou a produção de outros criadores e seguiu conselhos de mestres como Brassaï.

O teatro também foi fundamental nesse processo de formação do olhar. Jean Vilar acabava de criar projetos que se tornariam referências incontornáveis, o Festival de Avignon e o Théâtre National Populaire (TNP), e a convidou para documentar essas produções. Agnès também colaborou com a revista Realités, envolveu-se em outros projetos teatrais como a montagem de Papa Bom Dieu – peça encenada pelo primeiro grupo de teatro negro francês com conexões com o Teatro do Negro que Abdias Nascimento funda aqui no Brasil.
Em 1954, quebrando a lógica do mercado de arte, realizou sua primeira exposição, que não acontece numa galeria, mas em sua própria casa-ateliê, na Rua Daguerre, onde viveu até sua morte, em 2019. Uma batata brotando em formato de coração é uma das fotos dessa seleção de trabalhos antropomórficos, de forte cunho experimental e com um certo toque Dadá. A imagem torna-se recorrente em seu universo criativo, e é retomada, por exemplo, na Bienal de Veneza de 2003, a qual visita vestida, ironicamente, de batata. Foi nesta ocasião, quando a octogenária Agnès debuta no circuito das artes visuais, que João Fernandes, fã da cineasta, a conheceu pessoalmente. Cinco anos depois ele realiza uma mostra com filmes e videoinstalações de sua autoria, em Serralves. Bem que ele tentou, na ocasião, revisitar sua produção fotográfica, mas ela recusou dizendo: “prefiro ser uma jovem artista do que ser uma velha fotógrafa”. “Não tinha tempo de ir às caixas, queria fazer coisas novas”, lembra ele.

Quando Varda morreu, em 2019, a família encontrou caixas cheias de ampliações feitas pela própria artista nos anos 1950 e 1960 e milhares de negativos (28 mil, mais precisamente), colocados aos cuidados do Institut pour la Photographie, em Lille, e que agora alimentam a mostra paulistana. Dentre os tesouros descobertos está um ensaio, de 1958, de quando estava grávida de Rosalie: uma série de autorretratos de grande ousadia e beleza, nos quais a artista aparece nua, em poses radicais, porém nada eróticas, plena em sua gravidez.

Data do mesmo período o filme “Opera Mouffe”, que tem o fantástico subtítulo de “Caderno de notas filmadas na rua Mouffetard, em Paris, por uma mulher grávida, em 1958”. Aí são diversos tabus sendo quebrados: a confissão orgulhosa da condição de mulher, de mãe… E uma câmara atenta para os arredores do Quartier Latin, na qual flagra, por exemplo, figuras negras numa Paris ainda muito branca e elitista. A atenção ao outro está na essência da obra da artista, que registrou de forma persistente o cotidiano anônimo das ruas.

Segundo Fernandes, a obra de Varda é “expressão de uma relação particular com a vida, exercício de uma empatia que aproxima o seu olhar dos excluídos da cidade, das mulheres, dos velhos, das pessoas que dormem nas ruas”. Não se pode esquecer de que se trata de uma mulher fazendo fotografia, fazendo arte e fazendo cinema, em um mundo dominado pelos homens. “Gosto de dizer que ela tinha um tapete voador, mágico, com o qual se deslocava à vontade, de um lugar a outro de seu imaginário”, diz Rosalie sobre a fluidez criativa da mãe.

É inquestionável que a personalidade mais conhecida de Varda seja a de cineasta. Trata-se indubitavelmente de uma das maiores referências do cinema europeu, mesmo que La Pointe Courte (seu primeiro filme) tenha sido apenas tardiamente reconhecido como obra inaugural do Nouvelle Vague. E por isso é importante destacar que, paralelamente à exposição “Fotografia – Varda – Cinema”, o IMS organizou uma mostra de 20 filmes da autora, de forma a permitir que o público assista na grande tela a uma importante seleção de seus trabalhos.

O curador explica que a exposição apresenta um recorte curatorial mais preciso: “procuramos fazer uma exposição pensada a partir do Brasil e para o Brasil”. Neste escopo, ganham particular importância as viagens, o movimento que a artista faz em direção ao outro, a atração que exercem sobre ela os grandes movimentos políticos e artísticos do século 20. Por isso, além da retrospectiva, serão exibidas permanentemente na sala de exposição duas obras fundamentais da artista, com importantes ecos na cena brasileira: Salut les Cubains (Saudações, Cubanos!) e Black Panthers (Panteras Negras). O primeiro título, de 1963, é um exercício de liberdade construído a partir do seu entusiasmo com a revolução nascente. Ao olhar atentamente para uma realidade ao mesmo tempo estranha e familiar, Agnès transformou o encantamento com a revolução em subversão formal. Criou um documentário a partir da edição das fotografias que fez quando visitou a “ilha em forma de charuto” a convite do ICAIC (Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica). Rearticulou afetiva e racionalmente esses registros de forma sincopada, ao ritmo do chá-chá-chá.

Já Panteras Negras traz registros raros do movimento norte-americano nos anos de 1967 e 1968, quando morou nos EUA. “Negro é Honesto, negro é lindo” são as frases iniciais desse filme que combina “talento artístico, brilhantismo e empatia”, como lembra Jacqueline Lyanga no texto reproduzido no catálogo. A publicação é um complemento importante, pois traz não só os registros fotográficos, mas também análises, ensaios e depoimentos sobre a obra de Varda.

Ainda compõe este núcleo de viagens uma seleção de imagens comoventes realizadas por Varda na China de 1957. Da mesma forma que em sua viagem anterior à Cuba, registrada em Salut les Cubains, ela chega à China também incentivada pelo amigo Chris Marker. Como não foi transformado em filme, o material é bastante desconhecido e muitas dessas fotos são inéditas, sobretudo as coloridas, uma novidade tecnológica que adquire grande peso nos anos 1950. “É uma China antes da Revolução Cultural, que ainda tem convivência de formas de ancestralidade e a nova sociedade que estava em construção por lá. E ela vai focar seu olhar muito nas mulheres, nas crianças e em cenas de vida quotidiana, muitas vezes com humor”, descreve Fernandes. A cineasta Joyce Prado, em testemunho sobre o impacto de sua obra, cita uma frase-chave dita por Agnès: “Não quero espionar as pessoas que estou retratando, quero ser amiga delas”.


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