Por João Fernandes e Marcelo Araujo

 

Há um sentimento universal neste momento de pandemia de que o mundo não será igual quando a humanidade puder voltar a se encontrar no espaço público, quando se puder voltar a viajar, a trabalhar nos locais de trabalho, a encontrar amigos, a abraçar gente, a ir ao cinema, ao teatro, a concertos, quando se puder voltar a visitar museus e exposições…

Temos seriamente que nos interrogar como foi possível chegar a um momento desses. Quão indefesos estávamos perante uma possibilidade que antes só parecia possível em filme de ficção científica ou em filme de terror? E temos que assimilar muito do que sentimos, aprendemos e pensamos nestes dias de confinamento, e saber agir a partir de tudo isso.

No caso dos museus, que museus iremos encontrar quando reabrirem? É por demais óbvio que os museus não poderão reabrir do mesmo modo em que os conhecemos antes da pandemia. É previsível que restrições aos números de públicos que os visitam, cuidados sanitários, uma outra organização necessária do espaço, dos percursos e da mobilidade dos visitantes, um outro funcionamento do seu trabalho interno e das suas atividades públicas modificarão as suas rotinas por um período neste momento ainda indefinido. Desejando que esses cuidados sejam temporários (o que não é certo se a pandemia evoluir para uma realidade endêmica de longo prazo, como alguns já referem…), também no contexto dos museus importará interrogar a “normalidade” em que se vivia antes, de modo a alimentar a esperança de que o mundo melhore e não perpetue tantas das suas outras enfermidades reconhecíveis que nos conduziram à situação que agora vivemos.

Nesses tempos que hoje parecem longínquos (há três meses apenas…), antes de serem forçados a encerrar as suas portas, os museus, muitas vezes independentemente da sua dimensão ou relevância, viviam já alguns momentos difíceis. Dificuldades de natureza política, logísticas, de funcionamento e de financiamento, ensombreciam o trabalho na maioria dos museus do planeta, exceção feita àqueles museus estelares que marcavam a galáxia internacional, os quais mereceriam muitas interrogações pelas realidades contraditórias que propagavam. O papel do museu surgia cada vez mais condicionado pela busca sôfrega de visitantes, cujas estatísticas definiam junto a governos, mecenas e opinião pública os critérios de sucesso e de legitimação. O museu integrava-se veloz e apressadamente numa sociedade global do espetáculo que o pressionava cada vez mais para que se transformasse num elemento essencial da paisagem mundial do entretenimento e do lazer, mobilizando uma indústria do turismo que nele identificava uma das suas atrações. Aliás, como sucede no Brasil, não deixa de ser significativo que a pasta antes ministerial da cultura se integre agora como secretaria num ministério do turismo… São numerosos os casos que se verificam, num contexto internacional, dessa associação política da cultura ao turismo, muitas vezes acrescida do desporto, da China a Abu Dhabi, da Turquia à Etiópia…

Nesta sociedade que se estrutura ideologicamente no roubo do tempo à vida das pessoas, o museu surgia igualmente como um lugar de ocupação intensiva do tempo dos seus visitantes, não um tempo para a experiência sensorial das obras, o conhecimento, nem tanto assim um tempo para a aprendizagem ou a partilha dos objetos ou dos documentos neles apresentados, a reflexão individual ou coletiva em situações que neles se pudessem viver, mas antes um tempo ocupado em leitura nas suas paredes de textos quantas vezes simplistas ou redutores (quando não crípticos ou incompreensíveis…), um tempo preenchido com a duração de materiais audiovisuais sem fim, com visitas guiadas por audioguias, frequência de lojas, cafés e restaurantes, filas intermináveis para ver exposições blockbuster nas quais o tempo para estar em frente a uma obra era definido pela fila de espera que a essa obra dava acesso.

O museólogo Marcelo Araujo, diretor geral do Instituto Moreira Salles. Foto: Rogério Cassimiro

A visita ao museu começava a assemelhar-se à visita ao shopping center, condicionando a atenção e a curiosidade do visitante à permanente excitação das numerosas atrações que se lhe oferecessem no seu percurso. Ficava de fora o prazer da descoberta do desconhecido, o estímulo da curiosidade mais radical, o desconforto revigorante do confronto dissonante com as ideias, sempre já feitas e servidas como fast food para o espírito. O museu se afirmava como lugar de anestesia dos conflitos da vida, muitas vezes à revelia das obras apresentadas, mesmo quando os enunciava edulcorados pelo perfil curatorial politicamente correto das suas exposições e programas. A transmissão constante de informação se sobrepunha frequentemente ao convite à reflexão individual e/ou coletiva, à experiência e consequente interpretação livres do visitante, nessa entropia diabólica que leva a que o excesso de informação distancie quem a recebe do conhecimento crítico que a partir dessa informação possa construir.

Mega-exposições caríssimas cartografavam o mundo, movimentando obras que não deveriam viajar, deslocadas em função das relações de poder entre museus ou do dinheiro que pudessem originar, alimentando outras economias nas quais, para além do turismo, sobressaiam as economias de outros negócios, como os das empresas de transporte e de seguros, ou dos vários mercados que encontravam nessas exposições suas vitrines de luxo. Muitos museus ou centros de arte infantilizavam os seus públicos, numa visão equivocada de educação, dirigindo a percepção e a interpretação, em vez de as estimular dentro da liberdade individual de cada um e da sua expressão nas discussões coletivas que pudessem originar.

Fragilizados no seu financiamento, assim como na sua função republicana (não esqueçamos o Louvre como um dos primeiros momentos de expressão da emancipação da cidadania), atrofiados pela demissão do investimento dos estados democráticos e seus governos, os museus caíam cada vez mais na dependência crescente dos critérios de marketing das empresas que os financiavam, assim como dos gostos artísticos de seus mecenas, muitas vezes colecionadores privados frequentemente beneficiários nas suas coleções da informação especializada que obtinham através das sua participação em patronatos, conselhos ou comitês de aquisição de obras.

Como instituições integradas numa sociedade acumulativa e quantificadora, os museus eram igualmente entidades que refletiam na organização do seu trabalho interno a lógica economicista dominante nessa sociedade, destinando o tempo dos que neles trabalham e as verbas de que dispunham ao privilégio de uma hiperatividade focada na produção de programas contínuos e intensivos para um público pensado como ávido e consumista, secundarizando a investigação, o estudo das suas coleções, os serviços das suas bibliotecas, diminuindo todo um trabalho invisível que deveria pautar as suas finalidades. Integrados numa sociedade dinamizada pelo crescimento vertiginoso da desigualdade social, o museu perpetuava as relações de trabalho injustas reconhecíveis nessa sociedade, contribuindo para a paralisia social, expressando as suas discriminações sociais e culturais, programando em função dos valores culturais, econômicos e sociais que o financiam e gerem, explorando o trabalho intelectual dos seus funcionários, abusando do trabalho extraordinário e precário, não reconhecendo o tempo de investigação extra-laboral necessário, nem sempre respeitando a paridade de gênero nas suas hierarquias, reservando sempre os graus mais baixos dos seus organogramas e dos seus postos de trabalho para as gentes mais discriminadas social, racial e economicamente na sociedade que representam.

O curador João Fernandes, diretor artístico do Instituto Moreira Salles. Foto: Renato Parada

Agora que o mundo parou por uma pandemia, e os museus encerraram temporariamente as suas portas, aproveitemos este momento de suspensão para avaliar aquilo em que eles se estavam tornando e interrogar o que eles poderão ser após as suas reaberturas. Como em relação a tudo quanto antes vivemos, também nos museus vai tudo ficar igual depois deste confinamento, descontadas as precauções necessárias para reativar o que já se chama de “novo normal”? É provável que assim seja, pois a sociedade não mudou nas suas formas de decidir, nos políticos que elegeu, nas injustiças e contradições que revela. E no entanto, todas e todos sentimos em maior ou menor grau essa perguntazinha inquietante: vai tudo ficar igual?! Ela nos confronta com a urgência de que algo terá que mudar para nos protegermos melhor, para não chegar de novo a este ponto que nos revela tão vulneráveis e desprotegidos. Também em relação aos museus, ao mundo da arte com os seus momentos de atividade febril recentemente protagonizados pelo crescimento incessante do números de bienais e de feiras de arte, sentimos que não vai ser possível regressar a esse mundo, que é urgente pensar novas possibilidades de ser e de atuar, quanto mais não seja pela astral pegada ecológica deixada no passado por tantos dos seus diretores e curadores, movidos pela necessidade de acompanhar o mundo em que o seu trabalho virava global. Se configura urgente repensar essa mobilidade interminável paga pelos orçamentos institucionais ou até pessoais, outras vezes financiada por tantas feiras de arte ou festivais por meio das e dos quais o mercado filtrava as percepções curatoriais. Algo nos indicia que esse globalismo terminou, que estar em todos os lugares e em todos os fusos horários do planeta no rodopio incessante das bienais, feiras e grandes exposições internacionais chegou ao fim como missão e como objetivo…

Descobrimos ao longo deste período de confinamento novas formas de solidariedade, de preocupação com aqueles que nos são próximos e com aqueles que não conhecemos, novos modos de usar as redes e as ferramentas eletrônicas, além das evidências que se tornaram constantes (e em relação às quais vivíamos tão anestesiados), de como pequenas decisões podem reequacionar a sobrevivência, a relação entre a vida e a morte, a injustiça que criou discriminações tão ameaçadoras para a condição humana, a estupidez de eleger decisores que não estão preparados para nos proteger, que não nos querem proteger e para isso invocam a (sua…) economia. Descobrimos ao longo destes meses novos modos de sentir que habitamos juntos este planeta e que juntos deveríamos repensar o que lhe fazemos e como nele vivemos. O mundo que sobreviverá a esta pandemia nos chama a repensar as nossas vidas e as nossas tarefas a partir do desejo de uma outra proximidade, a partir das nossas casas, das famílias, dos amigos, dos conhecidos e desconhecidos em relação aos quais reconsideramos a nossa existência a partir da redescoberta de que a vida humana conta e tem que ser protegida quando se revela tão frágil e vulnerável.

É a partir dessa consciência que o museu necessita se reinventar, se recentrar nas suas tarefas, nas suas missões e objetivos. É a partir dessa redescoberta de nós mesmos que ganharemos a consciência de que o museu não pode nunca deixar de ser local, de se situar no lugar onde existe, no bairro, na sua cidade, no seu país, numa cultura da qual preserva, interpreta e redefine a memória e propõe um presente para essa memória. Atento ao tempo em que vive, será da conjugação de tempos múltiplos e da diversidade de modos de ver, de sentir e de pensar que resultará a sua viagem temporal, a sua intemporalidade. Assim descobriremos que o museu não pode deixar de se dirigir ao mundo, aos seus públicos mais próximos ou distantes, buscando incluir, mas não massificar nem indiferenciar, a partir da expressão da sua localidade, da história específica do contexto em que surgiu, reunindo-se agora a um mundo onde a curiosidade, a informação e o conhecimento crítico possam ser cada vez mais recíprocos a partir do reconhecimento de diversidades sem fim, de pontos de vista diferenciados, que se surpreendam entre eles em vez de se empobrecerem e resumirem na condição única e totalitária de serem globais.

Por isso é tão prioritário descolonizar a história dos museus, desconstruir os pontos de vista uniformizadores, exigir aos grandes museus “coloniais” do passado, como o Louvre, o British Museum, o Metropolitan, o Prado e tantos outros, que saibam reconstruir as suas narrativas a partir da consciência desse passado, da libertação das regras dos poderes que lhes definiram as coleções mas que não lhes deverão limitar a consciência crítica da diversidade dos pontos de vista. Despertos e conscientes das novas formas de trabalho e de conhecimento que estamos descobrindo a partir da internet, das redes sociais e das plataformas online, importa compreender que o mundo virtual não é apenas uma vitrine dos acervos e dos programas de atividades, mas também uma plataforma de encontro, de trabalho, investigação, de criação, de partilha de saberes e de conhecimentos, de discussão crítica e diversidade de pensamento, do trabalho em conjunto possibilitado a partir do reconhecimento dessa diversidade, da necessidade de reinventar novas formas e novos programas internacionais de colaboração. É indispensável começar de novo, descolonizar o museu da sua condição servil da ideologia de um poder e de uma economia globais que é urgente analisar e reconsiderar, compreender como as narrativas que os museus protagonizavam, a forma como recebiam os seus públicos, na condição de meros turistas consumidores, os desvirtuou e lhes roubou os desafios de uma contemporaneidade que só pode ser redefinida coletivamente, a partir da soma e não da acumulação estatística das percepções individuais nem da massificação redutora das emoções e dos conhecimentos. Novas relações de trabalho, novas transparências dos processos de trabalho são necessárias e possíveis nesse novo paradigma por construir.   

Um museu no Brasil, por exemplo, se confronta permanentemente com a necessidade de não se revelar inconsciente a respeito de uma história colonial marcada pela escravidão, assim como desse cruzamento tão fascinante quanto sempre reinventado entre uma cultura popular viva e surpreendente com uma cultura erudita tão singular e atenta ao seu contexto e história específica. Um museu no Brasil não pode negligenciar essa premência da revelação da diversidade cultural e artística do país, de uma diversidade racial, cultural, social, geográfica, de gênero e de identidades sexuais, seja nas suas programações, seja nas políticas de acessibilidade, ou nas formas de organização do seu trabalho interno. Um museu no Brasil necessita saber existir local, nacional e internacionalmente, consciente da amplitude do país, mas procurando mais longe ainda do que as suas fronteiras geográficas. Um museu no Brasil não pode ignorar a experiência de tantas ações inovadoras e exitosas como os museus de quilombos, favelas e comunidades indígenas.

A colaboração entre museus, suas programações e acervos, a nível nacional e internacional; as redes que possa estabelecer com museus da América do Sul, África e do resto do mundo serão um compromisso obrigatório, a ativar na miríade de ocasiões e de opções que se revelam, ou naquelas que se torna necessário e urgente construir. As pautas são inúmeras. Haverá que redefinir tarefas, missões, objetivos e prioridades. Toda uma conversa, toda uma discussão nos aguarda.

No momento em que se reabram as portas dos museus, não, não voltemos a esse “normal” que não o era, e que hoje é já obsoleto, por ter se revelado incapaz de nos proteger e preparar para os desafios com os quais o presente não cessa de nos confrontar. Desafios de um contexto necessariamente diferente, que certamente irá necessitar de museus. Para ele iremos reabrir, mais solidários, mais conscientes dos problemas e dos dilemas de um mundo por vir.

 

*Texto originalmente publicado na Revista Museu


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