Imagem do filme Konãgxeka: O Dilúvio Maxakalí, 2016, de Charles Bicalho e Isael Maxakalí. Foto: Reprodução

A primeira frase dita por Isael Maxakali ao atender a ligação da arte!brasileiros para uma entrevista sobre seu trabalho e o prêmio que recebeu no último mês de agosto foi bastante esclarecedora de como pensa o artista: “Para mim é uma honra grande, porque com o meu olho eu quero clarear o povo Maxakali. Se o meu nome cresceu bastante, também cresceu o nome do povo indígena e da nossa aldeia. Se eu ganho um prêmio, eles ganham também”. E ele completa: “Clareou meu povo, que sempre sofreu discriminação e preconceito”.

A fala sobre os Maxakali e a preocupação com a difícil situação vivida por eles nas aldeias de Minas Gerais demonstram uma visão onde as conquistas no âmbito pessoal só têm valor se vierem para o bem coletivo. Desse modo, em filmes, desenhos e animações produzidos por Isael ao longo de cerca de 15 anos de trajetória, o artista procura apresentar a identidade – “verdadeira”, como ele ressalta – dos Maxakali (ou Tikmũ’ũn, como se definem).

“No meu trabalho eu quero mostrar a nossa cultura para o Brasil todo reconhecer e respeitar. E assim poder ajudar os povos indígenas a terem terra, a recuperar seu território. Porque hoje a terra chora, o rio está secando, está poluído. Tem muito asfalto, vidro e cimento no lugar da mata. E aí vem o calor, o aquecimento, e isso tudo adoece as pessoas”, diz Isael.

O artista recebeu o Pipa Online, categoria aberta à votação popular de um dos mais importantes prêmios de arte do país, com 4.191 votos. Isael foi premiado com o valor de R$ 15 mil e deverá doar uma obra para o Instituto PIPA. Na sequência de Jaider Esbell e Arissana Pataxó (em 2016) e Denilson Baniwa (em 2019), essa é a terceira edição nos últimos cinco anos em que artistas de origem indígena recebem o Pipa Online.

Para Baniwa, “apesar de toda a controvérsia que é uma premiação, já que é sempre fruto do apagamentos de outras histórias – só existe um vencedor porque existe um derrotado -, é também o reconhecimento de uma caminhada que está sendo mais visível agora”. “Então do lugar onde estou, enquanto indígena, acho maravilhoso, porque eu estava saturado de ver nos prêmios sempre rostos que não se pareciam comigo, nem com as pessoas com quem eu ando”, segue ele.

Carmindo Maxakalí (à esq.) e o artista Isael Maxakalí (à dir.) em cena do filme GRIN (Guarda Rural Indígena), 2016, de Isael e Roney Freitas. Foto: Reprodução

A preocupação do artista de que um prêmio coloque diferentes narrativas fundamentais em disputa – de pessoas indígenas, negras, pobres ou não binárias – não deixa de vir acompanhada da satisfação de ver o reconhecimento dos indígenas enquanto artistas. “Então de onde eu estou tento entender essas narrativas e chamar também para relações um pouco mais saudáveis do que essa disputa”, conclui.

O fato é que artistas como Baniwa e Maxakali ajudam a trazer à tona questões urgentes na atualidade, especialmente em um Brasil que vivencia de modo intenso a opressão aos indígenas e a destruição dos ecossistemas. “O governo não tem compromisso com os povos indígenas e com as florestas”, diz Maxakali. “E no Brasil todo, onde tem aldeia, a aldeia preserva a mata, preserva o rio, preserva a cultura. Mas o governo quer acabar com a nossa cultura”, lamenta.

Trajetória nas artes

Nascido em Santa Helena de Minas em 1978, em uma das poucas aldeias Maxakali ainda existentes – que reúnem hoje cerca de 2 mil habitantes em áreas no nordeste de MG -, Isael passou a se interessar pela linguagem audiovisual por volta de 1999. “Por que eu aprendi a fazer filmes? Porque eu vi muitos filmes de outras aldeias, de Xavantes, Guaranis, e virou meu sonho fazer também dos Maxakali”. Isael não falava português – nem comia comida temperada ou bebia café, ressalta – e, ao mesmo tempo em que começou a aprender a língua, teve seus primeiros contatos com filmagem através da professora Rosangela de Tugny, da UFMG.

Foram anos de trocas com pesquisadores de Belo Horizonte até que produzisse seu primeiro filme. Em 2007, filmou tanto um ritual de iniciação de meninos, denominado tatakox, quanto o fim do resguardo de uma mulher após o nascimento do filho, feito através de rituais e cantos em um rio próximo à Aldeia Verde, onde Isael habitava à época. Hoje, o artista, que é também vereador da cidade de Ladainha desde 2016, ajuda a erguer a Aldeia Nova, também nos arredores da cidade.

Questões territorias, insegurança alimentar, falta de água potável e de acesso aos rios são apenas algumas das dificuldades cotidianas enfrentadas pelos indígenas locais – e não deixam de permear os trabalhos de Isael.    

Após os primeiros filmes, montados e legendados com a ajuda de colaboradores como Charles Bicalho, em Belo Horizonte, Isael intensificou a sua produção, muitas vezes ao lado da mulher Sueli Maxakali. Em Xokxop Pet (2009), por exemplo, registrou a ida de diversos indígenas a um zoológico de Belo Horizonte, onde cantam seus yãmîy (cantos sagrados) em homenagem aos animais no cativeiro; em Dia do Índio na Aldeia Verde Maxakali registra celebrações feitas na aldeia em 2010; e em Xupapoyanãg (2013) filma um grande ritual em que alguns indígenas representam lontras – bichos sagrados para os Maxakali – que vêm à aldeia vingar à morte de seus parentes.

Para Denilson Baniwa, Isael consegue como ninguém traduzir a riqueza e potência da cultura Maxakali para o mundo ocidental. “E, nessa conexão, ele cria uma relação onde ambos podem conviver. Quando ele coloca os espíritos Maxakali para o mundo, talvez eu entenda como uma voz de tentativa de criar relações. De dizer: ‘O meu mundo é esse, eu estou apresentando ele a vocês de uma maneira que vocês conseguem entender, que é pelos sentidos do mundo ocidental – pela audição e visão -, mas eu também quero que vocês compreendam que existe alguma coisa muito maior do que só o que vocês estão vendo e escutando’.”

Desenhos e animações

Não foi muito depois do interesse pelo cinema que Isael iniciou sua prática como desenhista.  No começo dos anos 2000 passou a utilizar principalmente aquarela para desenhar a natureza, os animais e pessoas. Apesar de entender como práticas distintas, diz que ambas produções fazem parte de um mesmo desejo. “Para mim toda imagem é viva, é espiritual, tanto no filme quanto no desenho. Se eu desenho, só falta colocar coração, para andar”, afirma.

Imagem do filme Konãgxeka: O Dilúvio Maxakalí, 2016, de Charles Bicalho e Isael Maxakalí. Foto: Reprodução

E foi o desejo de fazer o desenho falar e andar que desencadeou o interesse pelas animações, que se concretizou em anos mais recentes em dois filmes. Ao lado de Bicalho, após a aprovação de um projeto no Edital Filme em Minas 2015, produziu Konãgxeka: o Dilúvio Maxakali, curta exibido em uma série de festivais nacionais e internacionais. Outro filme que ganhou destaque foi Grin, de Isael e Roney Freitas, exibido e premiado na 21a Bienal Sesc_Videobrasil. O documentário resgata, através de uma série de entrevistas, as memórias dos Maxakali sobre a formação da Guarda Rural Indígena (GRIN) durante a ditadura militar, com relatos de violências sofridas pela população.

Atualmente, a recém-aberta 18a edição do Doclisboa apresenta Yãmiyhex, as Mulheres-espírito, novo filme de Isael e Sueli. Enquanto isso, o artista segue “cuidando da roça, buscando lenha, brincando” e trabalhando para erguer a nova aldeia Maxakali em Ladainha, enquanto exerce seu cargo político e o papel de liderança local. Está também fazendo mestrado na UFMG, “e se der, depois vou fazer o doutorado, para clarear o nome dos Maxakali, do meu povo”, conclui.

Segundo Baniwa, “apesar de algumas pessoas não conseguirem entender o quão complexo é o mundo Maxakali, assim como são os outro mundos indígenas, acho que o trabalho do Isael consegue alcançar as pessoas de maneira sensível. E se talvez em um primeiro contato não consiga ser entendido, é uma semente. Uma semente que é plantada e que o tempo irá dizer se eclode ou se ela morre, nesse solo em que eu, Isael e outros artistas indígenas estamos plantando”.


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