Arte e a população privada de liberdade. Ilustração da artista visual, quadrinista e zineira Line Lemos.
Ilustração da artista visual, quadrinista e zineira Line Lemos.

Recém-saído da zona crepuscular da pandemia, o “mundo da arte” retoma as atividades suspensas nesse período incomum: novas feiras são arquitetadas, bienais com calendários antes transtornados enxergam a luz do dia, finalmente, e as galerias ocupam outra vez o negócio cara a cara. Estagnado, porém, nessa movimentação ao novíssimo normal, encontra-se o debate sobre a presença da arte e da cultura no sistema prisional. Tampouco se discute sobre a política pública de cultura voltada a essa população em âmbito nacional, mas talvez esse fato tenha menos relação com os interesses do “mundo da arte” e mais com a realidade de que tal política, na verdade, inexiste. De todo modo, que papéis podem ter a arte e a cultura em um cenário liminarmente considerado como um “Estado Inconstitucional de Coisas” pelo Supremo Tribunal Federal?

Em Aprendizagem, Reabilitação e Artes nas Prisões: Um Estudo de Caso Escocês[1], Tett e colaboradores relatam que pesquisas conduzidas na América do Norte, Nova Zelândia e no Reino Unido demonstram que a participação em projetos artísticos dentro das prisões pode trazer significativas mudanças, como melhora no relacionamento entre detentos, com funcionários e com suas famílias; melhora da autoestima e autoconfiança; desenvolvimento de habilidades sociais e de comunicação; e incentivo ao trabalho conjunto e auxílio mútuo. No estudo, alguns dos participantes relataram que sua integração aos projetos artísticos os ajudou a resgatar memórias alegres do passado, sentimentos positivos que os pesquisadores relacionam a um fortalecimento na confiança dos detentos para participação em outras atividades de aprendizado. Esse conjunto de ações poderia ainda fornecer refúgios dentro do sistema prisional e fortalecer a capacidade do indivíduo para lidar com um ambiente hostil, além de, em certos cenários, auxiliar no preparo para o seu retorno à vida em liberdade.

Transportando esses resultados para o contexto brasileiro, é possível verificar a implementação de programas semelhantes? O Relatório das atividades culturais no sistema prisional, encomendado pelo Departamento Penitenciário Nacional em conjunto com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) em 2016, relata: “De forma geral tais atividades acontecem por esforços pessoais dos gestores da administração prisional e/ou de instituições parceiras da sociedade civil com ações de pouca escala e sujeitas a interrupções e descontinuidades”. De modo que “ainda que haja normativas internacionais e nacionais sobre a garantia dos direitos culturais à população privada de liberdade, observa-se que a produção cultural no sistema prisional brasileiro ocorre de forma pontual, fragmentada e desarticulada das políticas públicas de cultura em níveis nacional e estadual”. Assim, nem todos os estabelecimentos prisionais brasileiros contam com a execução dessas atividades, e estima-se que 90% dos 622.202 brasileiros sob custódia do Estado não tenham acesso às mesmas.

Para as unidades onde as atividades culturais acontecem, elas se concentram nas áreas de artesanato, livro, leitura e bibliotecas, artes visuais (desenho, pintura, fotografia), música (canto/coral, violão, flauta, bandas), teatro, dança, audiovisual (exibição de filmes) e capoeira, ainda que outras expressões tenham sido mencionadas como a comunicação (Rádio, Fanzines) Hip-Hop e a Arte Digital. No entanto, é preciso ressaltar um importante fator limitante que é a insuficiência de espaços físicos disponíveis e adequados para a sua realização nos estabelecimentos prisionais, fazendo com que as ações de arte e cultura sejam realizadas em salas de aula, pátios de sol, quadras esportivas e, em alguns casos mais precários, nas próprias celas.

Tangendo o assunto, o pesquisador André Luzzi, do Laboratório de Gestão de Políticas Penais (LabGEPEN), vinculado à UnB, chama à atenção que, “apesar do orçamento da secretaria de administração penitenciária ser um dos maiores do estado de São Paulo, só dedica 2% desse orçamento para reintegração social, todas as ações de inclusão das famílias, regularização de documentos, atendimento psicossocial, localizar e encaminhar pessoas para as vagas de trabalho, incluindo as questões culturais”. Segundo o pesquisador, “é flagrante que a prioridade não é a preparação para a liberdade e as ações que promovam direitos sociais no Art. 6º. da Constituição Federal. O que nós precisamos também é ampliar a destinação do recurso, ele existe e não é pouco”, indo ao encontro da fala de Claudia Aratangy, educadora, advogada e coordenadora do Núcleo de Oficinas, Formações e Campanhas da OAB-SP: “Tudo o que diz respeito a melhorar as condições de presídios e da vida das pessoas encarceradas é colocado no final da lista. Acho que o empecilho é, na verdade, uma vontade política”.

A advogada encara com otimismo, no entanto, as recentes mudanças trazidas pela Resolução Nº. 391 do CNJ, de 10 de maio de 2021. Com ela, outras atividades em arte e cultura podem ser compreendidas para a remição de pena – a leitura já era considerada. Anterior à Resolução, o relatório Subsídios técnicos para elaboração de orientação sobre remição da pena por meio de atividades culturais – um documento também produzido pela parceria DEPEN/PNUD de 2016 – já indicava que “compreender as atividades em arte e cultura no sistema prisional para fins de remição da pena é entender que as ações culturais são lugar privilegiado para a promoção de valores éticos, de solidariedade e cooperação, de cidadania, de reconhecimento e respeito às diferenças, de ressignificação de trajetórias individuais e coletivas, de formação integral e humana e de valorização da vida”. Aratangy aponta que a Resolução Nº. 391 amplia ainda a remição para pessoas estrangeiras, pessoas não alfabetizadas, e dá a possibilidade que não seja considerada apenas a escrita da resenha como comprovação de realização, em se tratando da leitura.

O relatório em questão enfatiza que em pé de igualdade está a abertura do sistema prisional para a sociedade civil e especialmente para os agentes do campo da arte e da cultura, “seja por meio da atuação dos diferentes fóruns de cultura, conselhos estaduais e municipais de cultura, das instituições de ensino superior, da rede de equipamentos culturais, dos pontos de cultura, educadores populares, dentre outros atores”. Explorando essa possibilidade, Aratangy conta que a própria OAB-SP vem tentando costurar algumas parcerias; a Santa Maria – fundação de livros didáticos que tem um projeto de leitura –, por exemplo, vai apoiar uma oficina de formação para que as mães encarceradas possam ser leitoras para seus próprios filhos.

Outro caso de interação sociedade-cárcere por meio da cultura é o conjunto de ações desenvolvido pela Pinacoteca do Estado de São Paulo que, desde 2017, tem uma parceria com a Coordenadoria de Reintegração Social e Cidadania da Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo – SAP para trabalhar com a população adulta privada de liberdade. Como fruto dessa colaboração surgiram oficinas, tanto com pessoas em regime semiaberto e que prestam serviço dentro da própria secretaria (resultando, posteriormente, em exposição), como em alguns centros de progressão penitenciária. Antes da pandemia, a Pinacoteca iniciou um processo, interrompido pela crise sanitária, no qual seriam desenvolvidas oficinas de serigrafia com as pessoas em regime semiaberto que prestam serviço na SAP; o material desses encontros geraria uma exposição itinerante, com planos de passar por três unidades prisionais da capital paulista, junto com a mediação dos autores dos trabalhos, além de um catálogo.

Apesar do plano não ter sido retomado até o momento, a Pinacoteca pretende realizá-lo no futuro. Além disso, o museu costuma receber visitas da população privada de liberdade adulta bem como dos jovens internos na Fundação CASA, trabalho que já se estende por 15 anos e que continua agora de modo híbrido, atendendo as visitas presenciais, mas também realizando percursos virtuais para as unidades do interior, as quais, devido à distância, dificilmente conseguiriam trazer os jovens para visitar o Museu em São Paulo.
Gabriela Aidar, Coordenadora dos Programas Educativos Inclusivos do Núcleo de Ação Educativa, conta que é importante ter uma abordagem específica para que esses públicos sintam-se “bem-vindos, acolhidos e participantes desse universo porque, de fato, à primeira vista é muito diverso, muito diferente, muito distinto do que é a realidade deles”.

“Primeiro nós estabelecemos parcerias para entender os processos que estão sendo desenvolvidos nas organizações de origem, então a visita ao museu tem que dialogar de alguma forma com o que está já sendo trabalhado nesses locais. A partir desses contatos nós pensamos em alguns roteiros que possam ser de interesse do grupo. ‘O que nós vamos conversar? O que vamos mostrar para esses grupos que pode ser relevante aqui no museu?’ Para cada grupo, vamos construindo percursos educativos particulares”, relata Aidar, reforçando o caráter participativo das visitas, com diálogo constante:

“Para quem está em situação de privação de liberdade, poder falar o que pensa, dar sua opinião, ser ouvido, valorizado, considerado, não é algo pequeno. Liberdade de expressão, nesse caso, não é algo secundário em absoluto. Esses impactos de ordem subjetiva são muito difíceis de mensurar, mas, para nós, são os principais de todas essas ações que desenvolvemos com esses grupos.”

Segundo Wellington Araújo, gerente artístico da Fundação CASA, “há uma inegável relação que se estabelece com o fazer artístico-cultural permitindo que a ideia de que fazer arte como algo apenas possível a quem nasceu com o ‘dom’ seja questionada. Isso abre possibilidades, não de se tornar artista com reconhecimento público, mas de que os conhecimentos e as habilidades imanentes ao fazer artístico sejam válidos a outras formas de existência em nossas vidas”. Já as visitações, segundo ele, têm como primeiro passo ultrapassar a barreira simbólica existente, permitindo acessar o espaço físico do local presente com seu corpo. As visitações dos adolescentes, mediadas pelas equipes educativas dos espaços culturais, também passam pelo Itaú Cultural, Catavento, Museu Afrobrasil, MIS, MIS Experience, Paço das Artes e outros com menor frequência. “O contato com o diferente sempre é enriquecedor, não é monocromático, mas colorido, permite observar com mais riqueza o que antes não se percebia”, afirma Araújo.

As visitas, os debates e as oficinas, direcionados aos adolescentes da Fundação CASA ou aos adultos sob custódia do Estado, contribuem para “desafiar e romper construtivamente as identidades negativas que eles haviam internalizado e que eles sentiam que às vezes lhes era comunicado por outros dentro e fora do sistema prisional”, como afirmam Tett e colaboradores, na pesquisa citada no começo desta matéria. Os autores assinalam, a propósito, que nas teorias contemporâneas sobre reinserção social e desistência do crime, o contato com a sociedade é fundamental. Nesse sentido, a exibição de seus trabalhos artísticos e artesanato, a execução de peças teatrais, as leituras de poesia ou prosa, apresentações de música, entre outras performances públicas, oferecem às pessoas privadas de liberdade a chance de trocar com a comunidade, compreendendo “uma importante forma de ritual em que um público estimado reconhece e celebra conquistas e mudanças”, logo, “parte da função dessas apresentações é que elas confirmem, não apenas para o público, mas também para os participantes, a autenticidade de sua realização.
Essas experiências têm o potencial de estimular a crença nascente na possibilidade de mudança e, assim, ajudar a construir novas identidades, redes sociais e contatos nos quais essas novas identidades possam ser inseridas. Ademais, essas performances podem ajudar os indivíduos a imaginar diferentes futuros possíveis”.

A partir disso é válido considerar – além das dimensões simbólica (relacionada ao imaginário, às expressões artísticas e práticas culturais) e cidadã (a cultura como direito e importância em contextos de vulnerabilidade social) – a dimensão econômica da cultura, como geradora de crescimento, emprego e renda.

O que está por vir

Uma vez libertos, é possível para os ex-detentos dar continuidade a esse estímulo – do saber e produzir artístico e cultural – iniciado durante os projetos realizados nos estabelecimentos prisionais? De acordo com o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), em 2014, 75% dos encarcerados não tinham cursado o ensino médio (um indicador de baixa renda); caso essas pessoas queiram dar continuidade aos estudos e ao contato com a arte tidos enquanto estavam detentos, é plausível supor que elas teriam que equilibrar estudo e trabalho, cuja conquista é ainda mais árdua quando se carrega um estigma como dos egressos do sistema prisional.

No estudo O Desafio da Reintegração Social do Preso: Uma Pesquisa em Estabelecimentos Prisionais, divulgado pelo Ipea em 2015, foram entrevistados participantes da administração do sistema prisional, da elaboração e execução de programas, projetos e ações voltados à reintegração social, atores do sistema de justiça, além dos próprios apenados (cujas identidades são respeitadas pelos pesquisadores, que decidiram mantê-las em sigilo). “Nenhum dos entrevistados desconsiderava este estigma que envolve o cárcere, ao que atribuíam uma das principais causas da reincidência criminal. Geralmente a sociedade não oferecia espaço de êxito social para o preso, considerando-o inapto para o convívio em sociedade, tratando-o com preconceito e discriminação, o que gerava revolta, pois consideravam injustos os rótulos vindos de fora”, registra o estudo.

“Eu estou bastante trilhado. Não quero mais crime, não quero mais nada. Só que a sociedade não está preparada para receber um ex-preso. E é difícil… Quando a gente passa pelo sistema, as portas fecham, principalmente as oportunidades de trabalho, fecham mesmo. Ter antecedentes criminais é complicado, a sociedade não quer saber”. Esse é o depoimento de um dos entrevistados, condenado a regime fechado, que pode ser complementado pela fala de um agente do mesmo complexo penitenciário: “Então, o preso pode ser ressocializado? Pode, mas, para que ele não volte ao sistema prisional, ele tem que ter oportunidades lá fora”.

Eventualmente é possível se libertar desse estigma? Como aponta Marina Dias, advogada e diretora executiva do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD): “O estigma fica, é muito difícil conseguir bloquear essas informações, então infelizmente é algo que acaba atormentando o egresso, muitas vezes, para o resto da vida”. Mesmo com o processo de Reabilitação Criminal – que torna sigilosas ao âmbito civil as passagens criminais de quem já teve a pena cumprida –, ainda há ocorrências de acesso a essas informações por ente que não diz respeito ao âmbito judiciário. “É por isso que a gente precisa refletir sobre essa máquina de triturar gente que é o sistema prisional”, completa.

Por fim, a discussão sobre política cultural destinada à população privada de liberdade passa obrigatoriamente pela contrapartida social uma vez que esses indivíduos tenham cumprido sua pena e retornado à liberdade, para que não lhes seja negada a possibilidade de gozar também da dimensão econômica da cultura. Dessa forma, a reflexão mais imediata e tangível é que se deve cobrar dos agentes do mundo da arte, se não um envolvimento, pelo menos um interesse pelos artistas que estão passando ou que já passaram pelo sistema prisional.

Em uma pesquisa feita pela reportagem, foi perguntado a 42 galerias de arte que participam das feiras nacionais de maior porte se elas poderiam apontar artistas egressos, representados pelas mesmas e/ou que já haviam exposto ou vendido obras na galeria: 80% responderam não reconhecer artistas com tal trajetória ou não ter conhecimento de tal histórico entre os artistas representados e/ou cujas obras já haviam sido vendidas pela galeria, enquanto 20% não forneceram resposta sobre a questão.

Embora não seja feita qualquer relação direta entre essa ausência e as mazelas do estigma recaído sobre os egressos, é oportuno questionar se não é passada a hora do mercado e das instituições começarem uma busca ativa por artistas egressos do sistema prisional ou facilitarem sua inclusão nos mesmos espaços.

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[1] – Lyn Tett, Kirstin Anderson, Fergus Mcneill, Katie Overy & Richard Sparks (2012) Learning, rehabilitation and the arts in prisons: a Scottish case study, Studies in the Education of Adults, 44:2, 171-185


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