Da direita para a esquerda: Patricia Rousseaux, João Fernandes, Voluspa Jarpa, Aníbal Jozami, Diana Wechsler, Fabio Cypriano e Mario Pfeifer. FOTO: Marina Malheiros

*Fotos: Marina Malheiros

 

Aconteceu na última quinta-feira, dia 6 de setembro, no Auditório Ibirapuera, o V Seminário Internacional ARTE!Brasileiros, intitulado “Arte Além da Arte”, com a participação de artistas, curadores, diretores de museus e historiadores de arte de vários países. O evento começou com a projeção do trabalho “Again”, do alemão Mario Pfeifer, e seguiu com o painel “Geopolítica e Arte”, com Aníbal Jozami, João Fernandes, Voluspa Jarpa, Diana Wechsler e mediação de Fabio Cypriano.

Primeiro a falar, o sociólogo argentino Aníbal Jozami, reitor da Universidade Nacional Três de Fevereiro (UNTREF) e diretor da BIENALSUR, destacou a importância da cultura na integração dos povos e de seu papel na diminuição das desigualdades e injustiças no mundo. “Porque pensamos isso, criamos uma Bienal que foi muitas vezes um ato de indisciplina” disse ele.

Em sua primeira edição, em 2017, a BIENALSUR foi realizada em 32 cidades de 16 países e, segundo Jozami, impactou de algum modo cerca de 25 milhões de pessoas. Para o sociólogo, fazer a cultura circular é uma forma de romper com a hierarquização vigente, que estabelece que o que deve reger o mundo é aquilo que foi pensado e criado no Norte. “Nós acreditamos que não há uma ordem hierárquica na cultura, na arte.”

Concebida inicialmente na UNTREF, em Buenos Aires, a BIENALSUR formou um comitê com integrantes de quase 30 universidades espalhadas por diversos países, inclusive de países do norte. “Porque para nós a ideia de sul não é apenas geográfica, mas uma perspectiva de mundo, uma forma de situar-se nele”.

Jozami falou ainda da importância de a BIENALSUR ser mais do que um conjunto de mostras, mas também uma plataforma de pensamento e de debate. “E assim criamos o projeto Sur Global, que a cada dois meses reúne artistas, críticos, curadores, sociólogos, filósofos e políticos de vários lugares para discutir sobre a arte e a cultura contemporâneas”.

Por fim, o argentino falou sobre diferentes eixos de trabalho da bienal, especialmente aqueles que tiveram impacto direto na vida de pessoas em regiões desprivilegiadas de várias cidades. “Porque eu acredito que é possível fazer a cultura circular e ir contra essa hierarquização vigente no mundo. É possível seguir sendo amante da utopia”, afirmou Jozami, antes de concluir falando da necessidade de romper fronteiras em um mundo que, infelizmente, ergue cada vez mais muros.

A segunda apresentação foi da historiadora de arte argentina Diana Wechsler, diretora artística da BIENALSUR, que expôs um pouco mais sobre a bienal e sua criação. Para ela, é notável que as relações hierárquicas do mundo contemporâneo também se revelem no campo da cultura. “Esta relação de centro e periferia no sistema capitalista atual está impressa também nas relações simbólicas, no âmbito da arte. Por isso, se esse mapa convencional nos impõe uma série de circuitos e hierarquias, nós nos propomos a desativá-las e repensá-las. Por isso falamos na palavra indisciplina”.

Wechsler explicou que a BIENALSUR propõe uma série de dinâmicas distintas daquelas instituídas em outros eventos do tipo, já que trata-se de uma bienal processual, deslocada no espaço e bastante horizontal em sua curadoria. Na primeira edição, a partir de uma chamada aberta para as propostas dos artistas surgiram eixos de trabalho, com temáticas como arte nas fronteiras, arte e ação social, intervenções no espaço urbano, questões ambientais, questões de gênero e imigrações, entre outros.

Ainda sobre a horizontalidade da BIENALSUR, Wechsler explicou que o evento realiza seus projetos tanto em museus e outras instituições de arte como em escolas, universidades e em espaços públicos de diferentes cidades; trabalha também com artistas jovens ou consagrados, de vários continentes, permitindo que eles que dialoguem e troquem experiências.

Por fim, a historiadora destacou a possibilidade da BIENALSUR “assumir as demandas sociais contemporâneas a partir da produção artística e incluí-las como problemas que possam fazer de cada mostra, de cada projeto, não só um espaço de conhecimento, mas também de pensamento”, permitindo que as pessoas sintam-se em diálogo com estes projetos.

Após as exposições de Jozami e Wechsler foi a vez da artista chilena Voluspa Jarpa falar sobre seu trabalho, ligado à história e suas representações, desenvolvido principalmente a partir da pesquisa de arquivos. A artista trabalha há cerca de 15 anos com os arquivos das agências de inteligência que os Estados Unidos tem desclassificado (ou seja, tornado público) sobre os países latino-americanos no período da Guerra Fria.

Segunda ela, suas razões para trabalhar com os arquivos “não provêm dos conceitos básicos da historiografia, da necessidade de verificar e contrastar fontes de informação para estabelecer um ponto de vista de disputa com o historiador”. A razão para se aproximar e mergulhar nos arquivos “vem do encontro com o apagamento e censura da informação, vem da não história ou, o que é mais misterioso, vem da dimensão do sigilo como questão de segurança nacional, sua histeria e sua mudez”, disse ela, relembrando que viveu a infância numa América Latina ainda marcada por ditaduras militares.

O início de sua pesquisa se deu com a desclassificação, em 1999, de arquivos referentes ao período ditatorial chileno, onde estão expostos detalhes sobre a participação americana na repressão violenta à opositores do regime. “Lembro do choque quando vi essas notícias, e da expectativa criada, já que pensava que iria se produzir uma grande agitação histórica no Chile a partir disso. Não aconteceu, mas para mim isso se tornou uma questão simbólica”.

A artista falou também do choque de ver que, mesmo nos arquivos desclassificados, havia muitas tarjas e riscos que impediam a leitura de todo o documento. “É um ato histérico de mostrar e reprimir ao mesmo tempo. E revela que em um documento de 1972, por exemplo, há ainda hoje razões para informações não serem reveladas.”

Voluspa Jarpa mostrou alguns de seus trabalhos envolvendo pesquisa de arquivos da inteligência.

Para Jarpa, pensar nas diretrizes geopolíticas explicitadas nestes muitos arquivos diz muito também sobre a cultura. “Pensar que isso não tem um correlato na arte é ignorar a plataforma histórica na qual nos movemos.” Segundo ela, uma das coisas que mais aprendeu em todo estes anos foi a entender a profundidade com que a geopolítica determina a subjetividade e a forma como os discursos circulam pelo mundo.

“Nós não temos suficientemente claro que ainda vivemos sob sistemas coloniais, não só econômicos e políticos, mas sobretudo psíquicos e subjetivos, que nos impedem de ver até que ponto nossas histórias e nossas decisões ainda não nos pertencem”, concluiu a artista. “Habitamos regiões que não estão suficientemente emancipadas. E quando produzimos, na arte, discursos de emancipação, acho que eles ainda não são olhados como discursos de emancipação.”

O último a falar no painel foi o português João Fernandes, diretor-adjunto do Museu Nacional de Arte Reina Sofia, de Madrid, que também foi diretor do Museu de Serralves, no Porto, entre 2003 e 2013, e curador em diversas bienais. Citando os trabalhos de Jasper e do alemão Mario Pfeifer, também presente no seminário, Fernandes começou sua fala propondo uma reflexão sobre a produção artística em um mundo cheio de desigualdades, exploração e opressão.

“É interessante a forma como tantas obras de arte hoje nos trazem essas evidências de problemas do mundo dos quais o mundo revela muito pouca consciência”. Para ele, muitas vezes a arte revela problemas escondidos e nos ajuda a problematizar discursos dominantes. Fernandes ressaltou, no entanto, um aparente paradoxo do mundo globalizado, no qual muitas vezes  “quanto mais informação, menos conhecimento temos”. “E até a própria proliferação da informação dos sistemas de comunicação artística contribuem para anestesiar socialmente muitas das próprias situações que acontecem.”

O diretor seguiu falando da importância da Bienal de São Paulo em seus primeiros anos na tarefa de descolonizar a história da arte; “descolonizar criticamente realidades que ainda hoje sobrevivem em relação a todo esse passado colonial eurocêntrico, homocêntrico, falocêntrico etc.”. Segundo ele, foi aqui que começou a ser assimilado, “comido, devorado e vomitado”, todo o discurso de dominação que marcou também a produção artística e o domínio geopolítico do mundo ao longo dos tempos.

“(…) temos que pensar como produzir a radicalidade de criar e problematizar novas linguagens artísticas independentemente dos sistemas da informação”, concluiu João Fernandes.

Após citar a Semana de 22 e a antropofagia, Fernandes falou da importância destes modelos de resistência surgidos na América Latina ao longo do século 20 e de como eles contribuíram com novas formas de fazer arte. Voltando aos tempos atuais, o diretor afirmou que “a arte tem absorvido muitos discursos produzidos fora dela e, se isso tem um lado positivo ao colocar em evidência fatos escondidos por uma ideologia dominante, também tem feito degradar e desintegrar aquilo que a obra de arte oferecia de diferente, da experiência dela, das suas novas propostas de construir formas de pensar, experienciar, sentir e divergir”.

O mais interessante, segundo ele, é pensar que a arte consegue estimular possibilidades de interpretação e conhecimento tão diferentes, “e isso é algo que só se consegue se a arte não abdicar e não deixar de aprofundar a radicalidade de um discurso próprio que ela sempre teve e pode continuar a ter”.

“Por isso não me interessa tanto uma ‘arte além da arte’, mas uma arte que faça parte do mundo, que saiba fazer parte dele, que nos mostre como a vida é mais interessante que a arte. Então temos que pensar como produzir a radicalidade de criar e problematizar novas linguagens artísticas independentemente dos sistemas da informação”, concluiu Fernandes.

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