Nheë Nheë Nheë
Nhee 2, Pinturas em aquarela de imagens de pedras

Estou sem tempo! Não podemos perder tempo! Esqueça essas expressões antes de entrar na exposição Nheë Nheë Nheë, Genealogia do Ócio Tropical de Márcio Almeida, no Sesc Santo Amaro, no Recife. Tente mergulhar no ócio, relaxar e pensar que a vida é uma aventura existencial.

Se tiver vontade sente ou deite no espaço expositivo, afinal este pode ser seu momento de descobertas, gozo, prazer de se encontrar consigo mesmo. Estar no ócio é estar no sossego redesenhando a vida e mediando o lugar da transgressão criadora. A vadiagem experimental se nutre de um não fazer nada criativo. Em síntese é o que transmite essa mostra sutil, de limpeza formal marcante, e que reflete sobre as relações de trabalho, desde o período do Brasil colônia até os dias de hoje.  O conceito traz outros contornos e reafirma o pensamento de Antonio Negri, filósofo marxista italiano quando define:  “O trabalho é capacidade de produção, atividade social, dignidade, mas por outra parte é escravidão, comando, alienação”.

A exposição é alinhada com três trabalhos anteriores e o mais recente, Nheë Nheë Nheë, é fruto da residência de Márcio Almeida na Usina de Arte Santa Terezinha, na Zona da Mata, sul de Pernambuco. Por alguns dias ele experimentou momentos de ação e descanso. Produziu dentro de um tempo livre, que nos dias de hoje corre o risco de ser eliminado pelo governo. Não trabalhar formalmente é visto pelo sistema como vagabundagem, preguiça, ócio. Hanna Arendt, em A Condição Humana, nos lembra que todas as palavras europeias para trabalho significam também dor e esforço – em latim e inglês labor, em grego ponos, em francês travail, em alemão Arbeit.

O que se distingue nessa obra é a forma de combinar elementos que brotam no espaço expositivo, desde o título da mostra nascido nas origens de nossa língua indígena. Ñheé, segundo o antropólogo Adolfo Colombres, significa fala. Portanto, Nheë, Nheë, Nheë, pode ser uma tradução livre de tagarelice. Também se refere a uma forma de controle exercida pelos religiosos na tentativa de unificar as linguagens tribais para facilitar a catequese forçada.

No texto de apresentação, o curador Beano de Borba comenta o trabalho de Márcio Almeida como um ócio tradicional e um rito selvagem, sustentados por uma insurgência do tempo liberto. A intenção do artista é “realizar um paralelo entre a questão do trabalho ocidental e o ócio tropical”. Nesse contexto, ele tem como base a interferência das religiões e as estratégias dos colonizadores na catequização os indígenas. Ócio e liberdade é o binômio que atravessa todas as quatro instalações que compõem a mostra. “No processo de curadoria partimos do novo trabalho, Nheë Nheë Nheë, e incluímos outras obras, desdobramentos ligados à lógica ocidental de trabalho e que refletem as distorções praticadas pelo sistema”.

A instalação Nheë Nheë Nheë, que dá título à mostra, é um exercício delicado composto por treze peças criadas com galhos de oliveira, pás e ferro de cova que dão forma às ferramentas de trabalho. Apesar do espaço relativamente pequeno da galeria, as obras fluem. A parede envidraçada do chão ao teto não atrapalha, ao contrário, incorpora a paisagem externa, mimetizando a vegetação com os galhos secos.  Em outra instalação, Nosso Descanso é Carregar Pedras, o serialismo está presente no conjunto de cartões de ponto de hospitais sobre os quais o artista ilustra com aquarela imagens de pedras, elementos simbólicos da escravidão desde os tempos bíblicos. O relógio de ponto marca o tempo demandado pelo sistema que, segundo Foucault, se transforma em uma forma de controle trabalhista.

A mais abrangente delas, Waiting for Work é marcada pela fotografia, uma série de dez imagens que captam o momento de descanso de funcionários após o intervalo do almoço. O tempo de não fazer nada, de livre reflexão e comunicação entre os colegas. Essa realidade do espaço temporal diário é extensão animada de um campo de atração e repulsa, movido por forças poéticas e sociais. Fecha a mostra, Truck Sistem, que toca em um dos aspectos mais cruéis do trabalhismo brasileiro, a servidão por dívida. Com cerca de 30 papéis carbono, coletados e grafados, Márcio Almeida coloca em discussão a recorrente escravidão por débitos vivida pela classe trabalhadora da cidade e do campo. Esse procedimento de abuso vigente no Brasil, mostra que o trabalhador não consegue liquidar suas dívidas com o patrão, mesmo as da cantina, tornando-se escravo permanente do empregador.

Nos dias de hoje, com o homem subtraído do tempo a que tem direito, Genealogia do ócio tropical poderia ser um ponto de partida para a bula do remédio: Vida outro Modo de Usar? O artista acredita que sim. “Entendo a produção como algo ligado diretamente ao pensamento livre, sem compromissos, é exatamente nesses instantes de reflexão que somos mais produtivos”. Márcio Almeida prova desse remédio constantemente. Só começa a trabalhar uma obra, sem nenhum instrumento, pensando tranquilo deitado na rede, maquinando ideias, literalmente no ócio.


Márcio Almeida: Nheë Nheë Nheë,
Genealogia do Ócio Tropical
Até 28 de setembro, das 9h às 17h.
Sesc Santo Amaro, no Recife.
Rua 13 de Maio, 455, Santo Amaro – Recife
+55 (81) 3216-1728

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