por Patricia Rousseaux e Fabio Cypriano
Generoso, Kader Attia conversou conosco no KW Institute for Contemporary Art, sede da Bienal de Berlim, no que ele chamou “de um excelente encontro, mais do que uma entrevista”. Artista, curador e pensador francês, nascido em 1970, Attia cresceu entre a França e a Argélia, fazendo dessa experiência de pertencimento a diferentes culturas sua prática. Ele encena uma obra sensível, na busca por um resultado estético e ético nos seus relacionamentos e na sua produção. É defensor incondicional da necessidade de trazer à luz o impacto que o colonialismo teve na modernidade, e sua pesquisa se centra em diferentes formas de reparação perante a hegemonia cultural ocidental. Vencedor de prêmios da Fundação Miró e do Marcel Duchamp, em 2016, e do Yanghyun Art Prize, de Seoul, em 2017, Kader Attia tem, entre suas individuais mais recentes, The Museum of Repair, na State of Concept de Atenas (Grécia), e Irreparáveis Reparos, realizada em 2020/2021, no Sesc Pompeia, em São Paulo.
ARTE!✱ – Temos, no Brasil, uma importante discussão em andamento com relação ao apagamento que os governos e a sociedade brasileira fizeram do racismo e da brutal desigualdade que nos caracteriza como país colonial…
Creio que o discurso e o diálogo decolonial é uma conversa que necessita evoluir permanentemente. Fundamentalmente no campo do qual estamos falando, o da arte. O capitalismo tenta se recuperar, por meio da cultura e da arte, apropriando-se das mensagens políticas, como essa da decolonização, e com isso temos o risco de que elas se tornem institucionalizadas. Ou seja, temos de ser capazes de cuidar das retóricas, de inventar uma linguagem, sempre nova, quase novos vocabulários, quem sabe abandonar a palavra “decolonial” e criar outra, por exemplo, “desmodernizar”, porque decolonial não inclui o feminismo, por exemplo.
O capitalismo tenta se recuperar, por meio da cultura e da arte, apropriando-se das mensagens políticas, como essa da decolonização
Você é um artista e já foi curador de exposições diversas. Qual foi o desafio maior de pensar uma Bienal?
Para mim, uma bienal não é uma feira de arte, é um laboratório, no qual temos que inventar o mundo. E nessa invenção, precisamos preservar a história da qual viemos, que nos precede. Porque a amnésia não faz bem. Eu conheço feministas, como Paula Bacchetta, que me comentava outro dia como os jovens de hoje dizem que não havia negras ou árabes feministas nos anos 1970. Não é verdade, havia nos anos 1980 uma organizacão de mulheres árabes chamadas Les Beurettes [nome dado a jovens de origem magrebina nascidas na França]. E a Paula também me disse que havia feministas nos anos 1970 que colaboraram com os movimentos de independência de Porto Rico, assim como com os Panteras Negras. Quer dizer, o feminismo já era decolonial, muito mais cedo do que imaginávamos.
Por isso, incluí muitos arquivos na bienal. Temos, por exemplo, projetos bem específicos, como o da israelense Ariella Aïsha Azoulay, The Natural History of Rape, e em outros lugares estão objetos em vitrines, como livros da coleção Archiv der Avantgarden, de Egidio Marzona, e o livro Djamila Boupacha, de Simone de Beauvoir, que fala da jovem militante argelina que foi violentada por soldados franceses e faz um eco com a incrível pintura Grand Tableau Antifasciste Collectif, que está na Bienal.
Nós também tivemos encontros com pessoas incríveis que já vieram falar aqui, como Françoise Vergès, Felwine Sarr, Joseph Tonda e Stefania Pandolf.
Eu diria que, como artista, tive uma facilidade de me relacionar com os outros artistas, por entender certas dificuldades. Ajudou o meu sentido de espaço e de como trabalhar com economias limitadas. Como artista, trabalhamos com outros artistas, que são outros universos intelectuais e emocionais.É uma responsabilidade enorme, que funciona com a confiança que os artistas dão a você, e para criar esta mensagem e compartilhar com o público, você tem que pensar muitíssimo em espaços que separam as obras. Espaços intersticiais, e então criar diálogos entre as obras, como o que acontece entre a pintura de Calida Garcia Rawles e o vídeo Erasing the Green, de Dana Levy.
Ou seja, como artista, criar um espaço de diálogo para compartilhar uma visão e assim abrir o pensamento do público. Porque especialmente nós, que trabalhamos com os tópicos da reparação, da decolonização, da modernização, não o fazemos para nossa própria comunidade. Estamos de acordo com a importância deles, mas as exposições – não sei quantas pessoas virão à Bienal, umas 100 mil – desempenham um papel político na sociedade muito importante, porque o público, a meu ver, está perdido em um mundo onde as informações e opiniões estão sendo constantemente manipuladas pelos meios políticos.
Ao criar um espaço de exposição como este, onde se trata de dar outra visão de uma sociedade cheia de feridas que não foram reparadas, é aí que outros espaços intersticiais são importantes, porque os espectadores têm que construir uma narrativa.
No WhatsApp, no Twitter, os grupos se relacionam em comunidades que são câmaras de eco fechadas, fascistas sem que saibam
Uma das coisas que chamam muito a atenção é a participação interdisciplinar dentro da mostra…
Creio que Jean Lassègue, um filósofo amigo, disse-me que conhecia um matemático, David Chavalarias, que fizera um projeto analisando 82 mil contas de Twitter, entre as duas eleições de Macron. Encontrei Chavalarias e disse a ele que, o que me parecia interessante em seu trabalho, é que estava mostrando a vulnerabilidade da opinião dos indivíduos hoje em dia. Bem, vocês no Brasil conhecem isso, com a eleição de Bolsonaro. Segundo Chavalarias, Gabriel Taub dizia, no fim do século 19, que o carisma e o magnetismo que um político consegue exercer sobre grupos alcança no máximo 500 pessoas. O processo de influência da opinião pública pertence aos sujeitos, entre si. E o que a governança algorítmica está fazendo hoje é a ampliação disso, que é tecnicamente possível.
No WhatsApp, no Twitter, os grupos se relacionam em comunidades que são câmaras de eco muito fechadas, fascistas sem que saibam, onde as pessoas vão ouvir o que querem ouvir, isolados. Nesse sentido, para mim, o que parece importante na ideia de espaços intersticiais para o espectador e com o espectador é, por exemplo, o que disse a David Chavalarias quando o encontrei: o principal seria como mostrar esse trabalho para o público. Como fazê-lo possível. Para mim isto é fundamental, e acredito que é o trabalho do curador, não apenas do artista. O trabalho é mostrar ao público como nos tornamos antissemitas, islamofóbicos, homofóbicos, transfóbicos, sem nos darmos conta, com uma espécie de raiva, quando somos manipulados por dados que circulam na velocidade da luz.
Convido as pessoas que vão para uma exposição para apenas estarem vivas e presentes, e não para instagramar suas vidas
Na sua opinião, qual é um dos maiores perigos que estamos enfrentando?
O verdadeiro perigo é a coleta de dados que está nos transformando. Primeiro, temos que entender qual seria a coisa que este capitalismo tecno-liberal mais deseja, quais são os mercados futuros que o capitalismo está explorando e, a partir daí, desenvolver estratégias de luta. Em suma, qual é esse neocolonialismo? É o neocolonialismo que está coletando dados por um processo simples que é chamar a atenção: quando a sua atenção está ativada, a governabilidade algorítmica está coletando informações.
Ontem, vi um artista falando que odeia a palavra vigilância. Então eu disse que não era de fato vigilância, mas é como [a escritora norte-americana] Shoshana Zuboff fala em seu livro The Age of Surveillance Capitalism. Trata-se da extração de dados, que na verdade constitui este mercado da atenção, esta economia da atenção e o torna extremamente poderoso.
Mas o processo de extrair dados nestas grandes companhias, como Facebook e Google, é apenas a parte mais visível dessa extração de dados, que depois são vendidos. O que nós produzimos constantemente, todos os dias, isso é um comportamento que é vendável neste mercado de atenção. Nós somos as cobaias desta economia de atenção. Como poderíamos lutar contra isso? Os artistas, os amantes da arte, aqueles que acreditam nela?
Eu me voltei aos estudos de Marshall McLuhan, que disse uma vez algo muito importante: no fim das contas, um trabalho de arte opera apenas com atenção. E o artista está roubando atenção. Então decidi que não trabalharia com arte digital na bienal porque isso seria uma armadilha também. Você quer criticar esta ideia, mas acaba apresentando o trabalho de alguém a quem admira. Há artistas que trabalham com isso, como o matemático David Chavalarias, Omer Fast e Zach Blas, que falam da vigilância digital, mas há também obras do passado, que estão contando a mesma história. Por isso, provavelmente, é muito importante para nós estarmos conectados com a fisicalidade da arte. Porque se trata de um campo de criação, produzido pela humanidade, que deixa muito mais espaço ao observador do que a vigilância computacional.
Quando você está olhando uma obra de arte, que seja por um segundo, você está aprendendo. Está ativo, e não passivo. A obra não está extraindo qualquer coisa de nós.
Para mim, é extremamente importante entender que, se eu me importo com o presente, eu na verdade me preocupo com a atenção. Eu convido a uma reapropriação da atenção.
Convido todas as pessoas que vão para uma exposição para apenas estarem vivas e presentes, e não para instagramar suas vidas, achando que eles estão consumindo algo, mas elas não estão. Elas estão apenas alimentando a máquina. A velocidade com que se manipula o Instagram é baseada em nossa confiança. Tudo é confiança.
Então, acho que temos que voltar ao espaço como um terreno comum, onde realmente nos encontramos, um espaço onde uma pessoa é tocada emocionalmente por um trabalho. Ficando com raiva de uma obra, por exemplo. Isso significa que você está vivo. Você não está passivo, desativado por um governança que tenta extrair de você.