A land art do italiano Michelangelo Pistoletto, agora finalizada, com 20 toneladas de pedras, encontra lugar permanente no Festival Arte Serrinha, em Bragança Paulista.
A land art do italiano Michelangelo Pistoletto, agora finalizada, com 20 toneladas de pedras, encontra lugar permanente no Festival Arte Serrinha, em Bragança Paulista.

A arte pode redirecionar o mundo e propor novas maneiras de viver? Michelangelo Pistoletto há quase dez anos se dedica ao ambicioso projeto Terzo Paradiso (Terceiro Paraíso), apoiado em um repertório crítico de terminologias matemáticas para desenvolver uma ação de respeito à natureza, aos espaços urbanos e ao homem, colocando a arte no centro de uma transformação social responsável.

Seria um engano imaginar que a proposta gira em torno dela mesma. Ao contrário, contamina outros circuitos, abre o campo das reflexões e narrativas por meio de atividades artísticas e educacionais envolvendo a população do local onde ela é instalada, provocando consequências sociais.

O conceito do projeto começa com o gesto de Pìstoletto de tomar o signo matemático do infinito como ponto de partida. O Terzo Paradiso é a fusão do primeiro círculo do símbolo, que ele diz ser integrado à natureza, com o segundo, imerso nas necessidades artificiais, para ambos formarem o terceiro que representa a nova humanidade.

De fácil identificação visual e teoricamente complexo, como ele mesmo define, Terzo Paradiso já foi desenhado, dançado, tocado, plantado, em diversas topografias: mares, rios, praças, projetado e até impresso em uma nave espacial italiana. Agora, em grande dimensão, chega à paisagem bucólica e montanhosa do 19º Festival Arte Serrinha, idealizado por Fabio Delduque em Bragança Paulista, que ocorre virtualmente até novembro, com o tema Arte e Ciência. A instalação reforça a ideia de Pistoletto de que a terra é a paisagem para um novo nível de civilização. A curadoria é de Marcello Dantas e Catarina Duncan, e a instalação foi feita sob a orientação do Pistoletto. “Não pudemos envolver a população nem os estudantes por conta da Covid-19. Mas agora o público poderá conhecer a obra feita com rochas da região durante todo o ano, porque já integra o acervo permanente do festival.”

Conversa em Havana

Há projetos que enfeitiçam e agem como substâncias alucinógenas nos seus autores. Converso com Pistoletto no hotel Raquel, em Havana, em 2015, acompanhado de sua mulher, Maria, um farol de sua vida. Tranquilo, animado, ele dá sinais de que faria o Terzo Paradiso no interior de São Paulo, então guardo a entrevista para esta ocasião. Na capital cubana seu trabalho ganha outros contornos por trazer à tona um mecanismo de controle. Ele acabava de fazer a performance sem a autorização do governo, envolvendo dezenas de barcos de pesca, sob a coordenação do artista Kcho, da curadora Laura Salas, ambos cubanos, e de Lorenzo Fiaschi, da galeria italiana Continua, com filial em Havana.

Terzo Paradiso montada na Baía de Havana, em 2015, como uma grande performance realizada ao lado de pescadores locais. Foto: Divulgação

Sem consultar a burocracia cubana, ele convence os pescadores a fazerem o signo do Terzo Paradiso flutuar na Baía de Havana. Sabendo da complexidade da situação, pergunto como conseguiu intervir dentro de uma área da chamada “água costeira”, território soberano do Estado, lei vigente em qualquer país. “Os pescadores devem ter o direito, como qualquer cidadão, de se manifestar. Terzo Paradiso é uma obra de processo aberto, comunitário, de ação planetária em que todos são autores e protagonistas independente de seu país, raça, política ou religião”. De qualquer forma Pistoletto executou a obra e testou um modelo de como exibir eventos performáticos em zona proibida. Havana é uma das embaixadas do Terzo Paradiso, assim como San Gimignano, Pequim e Quebec.

O novo milênio alerta que o planeta está sob risco. Terzo Paradiso pratica duas questões recorrentes, a reciclagem e a sustentabilidade ambiental. A função reprodutora do projeto está nos subprodutos gerados em seminários, debates, workshops, residências, festivais, na defesa de um futuro no qual natureza e sociedade coexistam de forma sustentável e garantam vida à terra. Terzo Paradiso significa a passagem de um novo nível de civilidade planetária.

“O termo ‘Paraíso’ foi apropriado pela religião como doutrina, mas pertence à língua persa que significa jardim protegido. Naquela cultura, Paradiso se refere à agricultura, ao modo de produzir vegetais no deserto, construindo dois muros paralelos de pedras, com espaço suficiente entre eles para deter a umidade e permitir que floresça a plantação. Do ponto de vista da religião, se configura como o jardim que se pode alcançar depois da morte”, explica. Mas os homens querem um jardim em sua vida terrestre, daí o artista criou um símbolo a partir da trinâmica, elemento tomado do sinal matemático do infinito. “Quero falar de nossa vida finita na sociedade, fazer nascer um terceiro espaço que representa o início e o fim de nossa existência. Afinal, tudo o que existe tem uma duração e depois acaba”.

Nessa perspectiva Terzo Paradiso é participativo, espacial e, sobretudo, político. “A arte não pode ser separada da política. Arte é política e a política tem que ser arte. A arte tem a liberdade de ser livre e responsável”. A Cittadellarte, seu centro de arte em Biella, onde nasceu, é a sede do Terzo Paradiso. Lá ele fez a exposição A Crítica não é Suficiente, uma espécie de resposta aos artistas que criticam o status quo sem propor nada de novo em troca. “Crítica é utopia e se for simplesmente bloqueada em uma situação não provoca o novo. Não basta um artista criticar o sistema, é preciso que ele tenha uma proposta de mudança”.

Considerado um dos artistas fundamentais da arte contemporânea, Pistoletto, aos 86 anos, testou positivo para Covid-19, passou um mês no hospital, se recuperou, segue trabalhando e assumiu uma nova identidade, como ele diz, passando de sujeito individual ao sujeito coletivo da criação artística. “A arte deve ser colocada no centro de uma transformação, introduzindo uma atenção à ecologia e à pesquisa prática, acompanhada de um processo mental que permita que as pessoas comecem a conviver com novas motivações. Arte é enzima de fermentação social, equilíbrio da efetiva realidade do mundo”, finaliza.


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