Nova sede do Museu Casa do Pontal
Nova sede do museu, projetado pelo escritório Arquitetos Associados, na Barra da Tijuca, Rio. Foto: Divulgação

“Chuva no Rio alaga Museu Casa do Pontal e danifica obras”, estampava o site da Folha de S.Paulo em abril de 2010; “Inundado pelas chuvas, Museu Casa do Pontal ficará fechado por uma semana”, relatava o Estadão em 2016; “Tempestade resulta na pior inundação da história de museu no Recreio”, cravava o Rio Notícias em 2019; “Museu Casa do Pontal é inundado pela oitava vez”, dizia o jornal O Globo, já em 2020. Não era neste tipo de noticiário, de tragédias ou acidentes, que a instituição com a maior coleção de arte popular do Brasil gostaria de estar presente, mas assim o foi por cerca de uma década. Mas os títulos de notícias e artigos que se leem agora, em 2021, demonstram que o Museu Casa do Pontal retorna ao lugar do qual não deveria ter saído: as páginas de cultura e arte de jornais, revistas, sites e blogs.

A constatação feita acima não significa que o museu carioca não tenha conseguido também receber um grande público, montar exposições e cuidar de seu acervo – mais de 9 mil peças – de 2010 até os dias de hoje, mas sim que o risco de enchentes permeou sem pausas a história recente da instituição. Essa novela finalmente acaba, definitivamente, com a abertura no dia 9 de outubro da nova sede do Museu Casa do Pontal, no bairro da Barra da Tijuca. Localizado historicamente em uma grande casa no afastado Recreio dos Bandeirantes, com terreno de 5 mil metros quadrados, o museu caminha 20 quilômetros em direção ao centro – se aproximando de um público maior – em um terreno de 14 mil metros quadrados, que inclui vasta área verde e uma praça aberta.

Passeata pela Reforma Agrária, parte do acervo do Museu Casa do Pontal
Passeata pela Reforma Agrária, de Celestino. Foto: Divulgação

Com projeto dos mineiros Arquitetos Associados – autores de uma série de pavilhões em Inhotim como a Cosmococa, a Galeria Claudia Andujar, a Galeria Miguel Rio Branco e o centro Educativo Burle Marx – o novo Museu do Pontal apresenta um edifício com linhas retas, ampla iluminação natural e ventilação que dispensa a necessidade de ar-condicionado. Com várias salas expositivas, o espaço ganha ainda reserva técnica e área de manutenção e restauro de que precisa – após anos de inundações, o foco neste setor teve que ser cada vez maior. Talvez resultado também das tragédias recentes, o museu contará com o reuso de água de chuva para a manutenção do jardim. Este, por sua vez, tem paisagismo assinado pelo Escritório Burle Marx, com milhares de árvores de 73 espécies nativas brasileiras.

A história 

Mesmo que ampliada no atual contexto, a preocupação com as questões ambientais não é novidade para o Museu Casa do Pontal, como explicam os diretores Angela Mascelani e Lucas Van de Beuque. Criado em 1976 pelo artista e designer Jacques Van de Beuque (1922-2000), a instituição reunia a vasta coleção trazida pelo francês de suas andanças pelo Brasil, onde havia se estabelecido décadas antes. O acervo foi sendo aprimorado ao longo do tempo tanto na gestão de Guy Van de Beuque (1951-2004), quanto na de Angela – que agora divide o cargo com Lucas, neto de Jacques. “Desde o meu avô, que teve seu primeiro trabalho no Brasil ao lado do Burle Marx, o museu tem uma relação muito forte com a natureza. Não a toa a casa estava localizada ao lado de uma reserva ambiental”, conta Lucas. “E agora nós queríamos manter essa relação da arte com a natureza, incluindo também essa grande praça, democrática, em um lugar que não tem essa tradição de praças, que é a Barra.”

"Circo", de Adalton. Exposta no Museu Casa do Pontal
“Circo”, de Adalton. Foto: Divulgação

Mas o que mais impressiona no Museu Casa do Pontal, de fato, é a sua coleção de arte popular que apresenta uma produção feita desde os anos 1930 até os dias de hoje. As mais de 9 mil obras de 300 artistas das mais variadas regiões do país incluem nomes como Adalton, Mestre Vitalino, Noemisa Batista, Nhô Caboclo, GTO, Mestre Didi, Ciça, Dona Isabel, Louco, J. Freitas, Manuel Eudócio, Nino, Sólon, Saúba, Zé Caboclo e Maria Amélia. Com mais espaço expositivo, a nova sede apresentará um número maior de obras destes e de outros artistas, por vezes em setores monográficos, por outras em áreas temáticas.

Em um primeiro momento, ganham destaque salas com os títulos: “Mundo Brincante”, com obras interativas e cinéticas, teatro de bonecos e jogos digitais; “Vale do Jequitinhonha, Minas – a força da terra”, com debates sobre a dimensão matérica dos trabalhos e sobre o termo “tradição”; “Mar, Rio, Fogo e Ar”, onde surgem antológicas esculturas em barro, barcos do Rio São Francisco, seres mitológicos e obras eólicas; e, por fim, “Poética da criação e as redes de apaixonados pela arte popular”, que coloca em diálogo obras da coleção original de Jacques com acervos doados ou emprestados para o museu, possibilitando a ampliação da apreciação do público. Ao longo da visita estão presentes ainda vídeos e depoimentos de personalidades como Gilberto Gil, Ailton Krenak e José Saramago. 

Mas, mais importante, estão presentes os depoimentos dos próprios artistas, em consonância com a busca do Museu Casa do Pontal pela valorização destes criadores que, muitas vezes, foram enquadrados apenas como representantes da produção de regiões e contextos sociais, tendo seus nomes relegados à segundo plano. “Porque a arte popular brasileira, em função das limitações do entendimento sobre ela, raramente está entendida como arte. E há 20 anos estamos discutindo essa questão de uma negação da categoria ‘arte’ para essas pessoas, como se eles não merecessem”, afirma Angela. “Justamente porque o campo das artes plásticas, entre todos os campos culturais, é o reduto mais fechado e elitizado. E como nós vivemos em um país extremamente classista e hierárquico, o olhar que se tem sobre essa produção é muito filtrado por estereótipos, de que seria apenas artesanato, algo feito para a comercialização.”

Popular e acessível

Popular em seu conteúdo, o novo Museu Pontal pretende ser popular também para o público visitante. Para além da praça aberta, o pagamento de ingresso será sugerido, mas não obrigatório, e a instituição pretende ter sua sustentabilidade econômica pautada mais na ideia de engajamento do que na bilheteria. Se soa utópico, foi assim que o museu conseguiu se reerguer ainda na velha sede e terminar as obras para a inauguração do novo espaço. Segundo Lucas, para além dos apoios de empresas privadas e estatais, centenas de pessoas participaram das campanhas bem sucedidas de financiamento coletivo promovidas nos últimos anos, resultando também numa rede de apoio ao museu que segue ativa e articulada.        

A rede de apoio se torna ainda mais importante, segundo os diretores, num contexto difícil para a cultura brasileira. “Das doações de empresas e pessoas vieram 75% dos recursos da obra, até porque outros recursos governamentais acabaram na vindo”, conta Van de Beuque. “É um momento de falta de esperança, de falta de horizonte, e acho que a cultura vem sofrendo especialmente, de uma forma constante. Então conseguir abrir o museu neste contexto, com um projeto possibilitado pela mobilização das pessoas, inclusive com colecionadores doando obras, acreditando no seu futuro, é maravilhoso. Mostra que a arte brasileira tem importância e que o público sabe valorizar o patrimônio do país.”

Após anos com dificuldades financeiras e estruturais – nos quais a instituição dependeu também de uma série de parcerias com instituições nacionais e estrangeiras para mostrar o acervo e manter seu nome em destaque -, o Museu Casa do Pontal parece se sentir seguro para um novo ciclo duradouro de atividades e convívio com o público. Em outubro de 2020, com a mostra Até logo, até já, o museu se despediu de sua antiga sede. Em outubro de 2021 o “até já” do título finalmente chegou, em um momento que, apesar da crise e do conservadorismo no país, a arte popular tem ganhado, aos poucos, maior destaque e respeito, segundo os próprios diretores.


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