Still de Amérika - Bahia de las flechas. Foto: Divulgação.
Still de Amérika - Bahia de las flechas. Foto: Divulgação.

Em 1519, Enrique, um dos poucos caciques restantes na República Dominicana, retirou a si mesmo e parte de seu povo do alcance da autoridade espanhola. Por quase uma década e meia, ele e seus seguidores viveram nas remotas montanhas do centro-sul de sua ilha natal, ocasionalmente invadindo assentamentos espanhóis em busca de armas e ferramentas e entrando em confronto com unidades de milícia.

Segundo a pesquisadora Ida Altman, “Enrique evitou as numerosas patrulhas enviadas para erradicar o que se tornou um local teimosamente persistente de desafio à autoridade espanhola que atraiu outros residentes descontentes da ilha, incluindo escravos e servos africanos e indígenas, bem como um pequeno número de índios nominalmente livres”.

De forma curiosa, o Lago Enriquillo acabou sendo nomeado em homenagem ao indivíduo que se rebelou contra um dos protagonistas da “história dos vencedores”: foi nesse lago em que Cristóvão Colombo aportou, em 1492, e confrontou o povo autóctone Taino para estabelecer o primeiro assentamento europeu no nosso continente.

Inspirada nessa história de resistência, a artista Ana Vaz [1] criou Amérika – Bahia de las flechas, cujo subtítulo refere-se a outro episódio emblemático na República Dominicana, da luta dos povos indígenas locais contra a ocupação espanhola. A Baía das Flechas é o antigo nome da atual Samaná, onde a lenda relata que os espanhóis teriam sido recebidos com uma chuva de flechas tão intensa que teria escurecido o céu.

Neste trabalho, Vaz revisita o Lago Enriquillo e usa a câmera como extensão do próprio corpo; com tal observação de cunho etnográfico, a artista evoca a mudança cultural e ecológica sofrida pelo território para fazer a história emergir do próprio cenário.

Em Amérika, a informação escrita e oral convive com a apreciação visual e auditiva do mundo ao redor, talvez até mais constituinte. O debate sobre a suposta oposição entre cultura e natureza incorporado aqui não é novo no trabalho de Vaz, que desde projetos passados estuda outras formas de explorar a história – com certa liberdade poética imbuída pelos artistas que não é comum aos historiadores, por exemplo. Na sua recente exploração, podemos destacar o questionamento dos nomes dos lugares, quais nome eles possuem e seu “porquê”.

Para o Acervo Comentado Videobrasil, a curadora e historiadora da arte Sabrina Moura [2] comenta Amérika, assista abaixo:

Assista aos episódios anteriores do Acervo Comentado

Acervo Comentado Videobrasil é uma parceria entre arte!brasileiros e a Associação Cultural Videobrasil. A cada 15 dias publicamos, em nossa plataforma e em nossas redes sociais, uma parte de seu importante acervo de obras (reunido em mais de 30 anos de trajetória). Em todo episódio, uma personalidade diferente – variando de artistas a curadores, de pesquisadores até diplomatas – destrincha a obra ou uma particularidade dela, realçando pontos desses trabalhos que talvez ainda não tivéssemos descoberto. Confira os outros episódios neste link.


[1] É artista visual e cineasta, graduada pelo Royal Melbourne Institute of Technology, Austrália (2009), e mestre em Cinema e Artes Visuais pelo Le Fresnoy Studio des Arts Contemporains, Tourcoing, França (2013). Seus filmes, publicações, performances e videoinstalações refletem sobre a relação entre cinema e linguagem, investigando as relações simbólicas referentes aos legados arquitetônicos, projetos utópicos e relações de poder através de seus vestígios. Realizou as exposições individuais Framing Nature, Vita Kuben, Ümea, Suécia (2017); e Amérika: Bay of Arrows, Ludlow 67, Nova York (2017), e participou das coletivas Excusez-moi de vous avoir dérrangés, Khiasma, Paris (2017); Performing Oppositions, Casa do Povo, São Paulo (2017); Moscow Biennial of Young Art (2016); Obscure Objects of Desire, Paramound Ranch, Los Angeles (2016); e 3rd Dhaka Art Summit, Bangladesh (2016), entre outras. Teve retrospectiva de seus filmes na Melbourne Cinémathèque, Austrália (2013) e na Void Gallery, Irlanda (2014). Vive e trabalha em Lisboa.
[2] Sabrina Moura é curadora e historiadora da arte, doutora pela Unicamp. Foi pesquisadora visitante da Columbia University e curadora de programas públicos dos 18° e 19° Festivais de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil. Organizou o livro Panoramas do Sul | Leituras | Perspectivas | Para Outras Geografias do Pensamento.

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