“Nem doença, nem faca, nem bala … Entre quarta e sexta-feira nenhum de nós morre”, confiam alguns dos devotos acompanhados pelo fotógrafo belenense Guy Veloso na Semana Santa. Esses, em específico, são vindos de Oriximiná, cidade no coração da Amazônia. Ao longo de 17 anos, Veloso registrou 203 grupos como esse, também chamados de confrarias, em 13 estados, nas cinco regiões do país. Parte de sua vasta pesquisa, composta por dados e fotos, é lançada agora em formato de livro, intitulado Penitentes – dos ritos de sangue à fascinação do fim do mundo, sendo esse o primeiro volume brasileiro de fotografias que aborda o tema dos penitentes com abrangência nacional. A publicação foi contemplada pelo Rumos Itaú Cultural de 2017-2018 e está disponível online. A curadoria do fotolivro é de Rosely Nakagawa, com epílogo escrito por ela, pelo filósofo Guilherme Ghisoni Da Silva, e pelo próprio Guy Veloso. 

Quem são os penitentes 

Os penitentes são grupos espontâneos, místicos, muitas vezes secretos, que saem noite adentro rezando pelos “espíritos sofredores”. Sua origem data do período medieval na Itália, quando os homens faziam um voto para expurgar os pecados individuais e coletivos. Para isso eles se açoitavam, recebendo o nome de “flagelantes”. No século 13, o voto propagou-se pelo Velho Mundo, particularmente durante a peste negra, perpassando séculos e encontrando campo fértil na Península Ibérica. Interpretando o texto “A Vontade de Saber”, de Michel Foucault, Rosely Nakagawa aponta que “muito além da confissão, o penitente deve ‘produzir a verdade’ concretamente, deixando marcas, provas deste flagelo”.

Hoje, a flagelação acontece apenas em 4% das congregações, em casos raros e dramáticos nas sociedades estritamente masculinas da Bahia, Ceará e Sergipe, praticantes do autoflagelo em formato semelhante ao de séculos atrás na Europa. São chamados aqui de Rito de Sangue, uma forma dos devotos de imitarem a Jesus. O voto é acompanhado de certas cobranças que precisam ser respeitadas rigorosamente, caso contrário, danos podem ser provocados à saúde pelos espíritos, crêem. Entre as obrigações estão abstinência de álcool, dança, jogatina e sexo; a este último, acreditam que o desrespeito possa levar ao sangramento excessivo durante a penitência e possivelmente à morte. O voto perdura um período de sete anos e a cerimônia do Rito de Sangue termina somente quando o capuz e a túnica vestidos estão completamente tingidos de rubro.

De forma geral, a penitência é praticada durante a Quaresma e a Semana Santa, com homens e mulheres realizando desfiles noturnos começando à meia noite: “Eles num momento morrem; e até à meia-noite os povos são perturbados, e passam, e os poderosos serão tomados não por mão humana” (Jó, 34:20). Os rituais, embora vestidos de teatralidade e mistério, são reservados, por vezes até sigilosos, algo justificado pelo preconceito sofrido pelos Recomendadores de Almas (como também são chamados) por parte da população local, além da discriminação da igreja e das perseguições policiais. Nesse sentido, o trabalho de Veloso  funciona para validar esses ritos que fazem parte da nossa cultura imaterial. Como afirma Guilherme Ghisoni da Silva no epílogo do livro: “Não devemos negar a cultura que temos, mas olhá-la nos olhos, como faz o fotógrafo, e compreender que o que lá é visível somos nós mesmos.” 

Nas influências europeia e africana, Veloso procura o sincretismo brasileiro que o leva a aprofundar a questão da penitência. Ela é inserida no Brasil pela colonização e passa por transformações à medida que entra em contato com um país multicultural, multiétnico, com fé diversa – demonstrada em múltiplas religiões como espiritismo, umbanda, pajelança -, e costumes, superstições e crenças locais coexistentes. Tanto que são organizações de base familiar que possuem autoridade; não existem lideranças centrais, nem dogmas, a penitência em si não se trata de uma religião, embora a maioria de seus praticantes se mostre católico, segundo Veloso. O sincretismo, que molda essas diferentes práticas, também acaba por fundir a cultura contemporânea regional brasileira ao culto de origem medieval europeia de maneira única. Algumas das imagens contidas no livro – como uma penitente com um celular na mão e a presença de carros e motocicletas – parecem um lembrete da contemporaneidade das imagens, nos tirando de uma paisagem que invoca tempos medievais e encarando algo que subsiste nos rincões do Brasil atual.

De nada pedem

De nada pedem os Encomendadores de Almas, pelo menos não para si mesmos. As cerimônias da penitência são imbuídas por forte altruísmo: são solicitados favores para as almas necessitadas, em outro plano; no nosso, as famílias que se encontram em luto são consoladas enquanto assistem seus entes queridos serem recordados. Quando saem noite adentro, os penitentes estão cobertos por vestuário incomum, não raro escondendo todo o corpo em tecidos brancos com cruzes bordadas. Sua chegada é anunciada pelo som soturno dos benditos, jaculatórias e ladainhas. Nunca devem eles olhar para trás, as comitivas marcham em fila indiana justamente por conta disso, pois a pena de quem se voltar para o caminho já andado é vislumbrar as almas que os acompanham nas procissões, pelo menos é o que reside na crença dos Irmãos de Almas. Uma regra com um núcleo quase filosófico. 

Documentando os Encomendadores de Almas

Várias dessas confrarias jamais tinham sido documentadas antes desse projeto. Veloso começou a pensá-lo ainda em 1998, quando viu na romaria de Juazeiro do Norte (CE) 15 pessoas com mantos azuis e cruzes bordadas nas costas. Aquele foi o primeiro grupo penitente que o fotógrafo teve contato, os chamados Aves de Jesus, embora tenha sido apenas em 2002 que esse “penitente iniciado” estruturou seu projeto de pesquisa e buscou organizações similares em outros estados do nordeste, expandindo para o território nacional a partir de 2009. 

Uma das ordens visitadas por ele, a dos penitentes de Juazeiro, na Bahia, o reconheceu como um de seus membros, permitindo sua participação nos cultos fechados. No livro, Veloso se refere a eles como “o meu grupo”, e é à líder dos De Trás da Banca, Dona Nenezinha, que ele dedica seu trabalho. Ao ser aceito e chegar mais perto em sua fotografia, física e metaforicamente, o belenense salvaguarda uma parte dessa tradição com a proeza de registrar tanto de algo tão escondido e tão passageiro. 

Junto com a arte e a religiosidade, há em sua obra um forte valor antropológico. Para Ghisoni da Silva: “A descoberta do fotógrafo, de que há Recomendadores das Almas nas cinco regiões do país, é uma prova de importante valor acadêmico”. Uma fascinante parcela desse mundo teria sido levada pelo vento caso Veloso não tivesse abordado a questão de tal maneira, colecionando entrevistas em vídeo e registros sonoros, peças originais dos votos, matracas e mantos – talvez o maior acervo do tema no Brasil. Esse aspecto é encontrado nos registros visuais pelo caráter documental que se firma em sua obra e coexiste com a forte expressão artística da qual as imagens são dotadas. Há a intimidade e o comprometimento com os fotografados, e o olhar de um pesquisador que se dedica há anos a documentar suas histórias. Um observador disposto a nos ceder o benefício de não ser despossuído de julgamento diante da imagem, mas de estender o convite a uma reflexão mais aprofundada. 

Dupla religiosidade

Em certo ponto do livro, Ghisoni da Silva questiona: “É a ascese espiritual do indivíduo retratado que dá força expressiva às imagens ou é a ascese espiritual do próprio fotógrafo?”. Ao que ele mesmo responde, afirmando que “é na união dessa dupla religiosidade, do que é visto e de que vê, que a documentação dos rituais religiosos alcança o estatuto de arte em Guy Veloso. É por vermos o mundo através de um olhar genuinamente espiritual que vultos na noite, encobertos em tecidos translúcidos, se tornam a porta de entrada para a dimensão inefável do divino”. Desde criança, quando assistia à passagem do Círio de Nazaré em frente à casa de sua avó, Veloso tem a busca pelo sagrado como parte de sua vida. 

O olhar espiritual referido acima é notável nas fotografias através dos borrões – vindos da baixa velocidade do diafragma para fotografar à noite sem flash e pouquíssima iluminação -, das distorções nas cores, nos fotogramas expostos mais de uma vez, pelas luzes “vazadas” no dispositivo e até pelos problemas na revelação, mantidos por Veloso da mesma forma como uma de sua fotos “resolvidas”. Tal estética foi tomando corpo no projeto e criou uma assinatura para Veloso. Afinal, a sua obra também é fotografia-expressão em que a maneira, o estilo, produz sentido, há o elogio da forma e a necessidade de um formato assumido pelo autor, como conceitua o teórico André Rouillé. Há muitos níveis de percepção nas imagens de Veloso, de um lado o da informação explícita e de outro lado o que é implícito, o indizível que toma forma e é subscrito na atmosfera criada pelo fotógrafo dentro de sua narrativa junto aos penitentes. Elas, as imagens, fascinam seja pelo desconforto que nos causam, pelo medo, excitação, curiosidade ou aflição, cumprindo a função da fotografia como um detonador de emoções.

A foto mostra o teto de um quarto de hotel, em Carmópolis, pintado como se fosse o céu
Quarto de hotel, Carmópolis-SE, 2018. Digital. Legenda do livro.

No começo do epílogo, o observador é indagado com algo que é cerne desse projeto e lhe é respondido ao ponto em que os registros se findam e começam as palavras: “Qual sentido a religiosidade pode ainda ter em um mundo no qual os filósofos já declararam a superação de Deus como o fundamento da realidade e os psicólogos, as patologias que acometem as superstições?”.


Guy Veloso: Penitentes
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