Yona Friedman (1923-2020) no "Museu sem Edifício", realizado no CNEAI (Centre National Édition Art Image, Pantin, França), em 2018. Foto: Cortesia Fonds de Dotation Denise et Yona Friedman, com a colaboração do CNEAI e de Sylvie Boulanger.


“Tão importante quanto o direito à vida, o direito ao trabalho, o direito à justiça, além de muitos outros”, escreveu Yona Friedman, é o “direito de compreender”. Este seria – para o artista, arquiteto, urbanista, sociólogo e antropólogo – um dos direitos humanos essenciais, já que “compreender as coisas permite saber se comportar diante daquilo que nos cerca”. “Pois compreender as coisas é ser capaz de dominá-las”, seguia ele. Estas afirmações, grafadas ao lado de ilustrações de traços simples e em formato de quadrinhos, fazem parte de um dos vários manuais produzidos por Friedman ao longo de sua vida (1923-2020), que agora são apresentados na mostra Democracia, no Memorial da Resistência de São Paulo.

Nesta mesma peça, o artista prossegue com críticas a um intelectualismo ou cientificismo que despreza os leigos e iletrados: “Um conhecimento que é considerado verdadeiro pode ser explicado tão facilmente na linguagem do leigo quanto naquela do intelectual. É mais vantajoso, no entanto, expressar uma verdade na linguagem mais simples”, afirma o texto, acompanhado de imagens em que matemática, ciência ou engenharia são explicados através de situações do dia a dia.

Apesar das variadas facetas e da vasta produção de Friedman – judeu húngaro que vivenciou a Segunda Guerra, passou anos na Romênia e em Israel antes de se radicar definitivamente na França -, a exposição destaca especialmente este aspecto da comunicação e dos direitos humanos na obra do autor, com sua busca pela criação de uma linguagem acessível e democrática. “Quem quiser compreender deve primeiro fazer perguntas. Nenhuma questão é tonta (enquanto muitas respostas o são)”, segue o manual do autor. Este e outros manuais, dedicados a temas sociais como moradia, democracia e meio-ambiente, feitos para instituições como Unesco e Universidade das Nações Unidas, dão a linha principal da exposição.

Com curadoria de Ana Pato, coordenadora do Memorial desde maio de 2020, e assistência de Carolina Faustini Junqueira, a mostra reúne produções de diferentes momentos da trajetória de Friedman, incluindo ainda filmes, desenhos, colagens, instalações e propostas para espaços culturais. A curadora, que já desenvolvia anteriormente pesquisa sobre Friedman – incluindo uma residência no CNEAI, na França, em 2019 – propõe um paralelo entre o trabalho do franco-húngaro e os ideias do memorial paulistano, dedicado principalmente à memória dos períodos de ditadura no Brasil: “Em tempos de negacionismo sobre temas que são postulados inegociáveis para o Memorial da Resistência, a defesa de Yona Friedman por formas de transmissão de conhecimento abertas e participativas é essencial para pensarmos o papel da comunicação na luta pela valorização de princípios democráticos, pelo exercício da cidadania e pela educação em direitos humanos”, escreve ela no texto de apresentação.

A multidisciplinaridade e o hibridismo na produção de Friedman são notáveis na exposição, ainda que nem todas as facetas de seu trabalho sejam aprofundadas. Na construção do espaço expositivo – concebido por Anna Ferrari, Isabella Rosa e Pedro Lins -, um slide show é projetado, os desenhos e manuais são grafados diretamente nas paredes, cartazes “descem” pendurados do teto, lambes são colados ao chão e uma instalação realizada em fios de alumínio surge suspensa, evocando técnicas construtivas intuitivas. Em tudo isso, destaca Ana Pato, a imagem se mostra central: “Ele coloca esse ponto de vista de que o direito a compreender e o direito a interpretar vêm sempre de acordo com a experiência de cada pessoa e, neste sentido, a imagem se torna central para comunicar. Pois para ele a imagem é uma linguagem que exige atenção, mas não necessariamente conhecimento”.

Uma arquitetura pouco usual

A produção mais propriamente arquitetônica de Friedman – pela qual ficou conhecido em universidades e influenciou meios da contracultura no século 20 – surge mais discretamente na exposição em uma das duas vitrines expositivas. Estão ali apresentados o que o autor chamou de espaços culturais, sendo eles o Museu de Rua, o Museu dos Grafites, o Museu ao Ar Livre, o Museu do Passeio e o Museu sem Edifício. De modo geral, eram mais proposições do que projetos a serem construídos, por mais que alguns tenham saído do papel – como o Museu de Tecnologia Simples, construído em 1987 na cidade indiana de Chennai. Estruturas efêmeras e adaptáveis e materiais reutilizados a serem moldados coletivamente surgem nestes projetos que certas vezes são apenas desenhos e escritos: “Ele dizia que não se trata mais de construir, objetos ou prédios, mas de expressar funções. Então ele vai discutir muito essa possibilidade de imaginar configurações sociais que fossem realizáveis. Sem dúvida, o Yona não se importava muito com o resultado. Ele trazia a proposição e por isso sua obra é tão livre”, explica a curadora. A Cidade Espacial pensada pelo autor surge também em desenhos na exposição.

Voltando ao texto do manual citado ao início desta matéria, as palavras do próprio Friedman aprofundam o porquê de suas propostas inovadoras, e como as ideias de comunicação democrática e arquitetura se entrelaçam: “Um museu não é um museu sem seu público: um museu sem público é apenas um depósito de objetos inúteis. Mas aqueles que visitam um museu nem sempre fazem parte de seu ‘público’ de iniciados. Muitos visitantes são passantes que não observam atentamente aquilo que é oferecido à atenção de todos, iniciados ou não, e que não fazem perguntas porque eles não ousam fazê-lo envergonhados de sua ignorância. Esses desistem de saída de compreender.”

Neste ponto da mostra, não passa desapercebido ao visitante algum contraste entre a proposta de Friedman – que “elegeu a rua como lugar público e democrático para criar espaços colaborativos de intervenção na cidade” – e a própria configuração da exposição no Memorial da Resistência, que ocupa um dos andares do edifício compartilhado com a Pina Estação, com pouca abertura para a rua. Incrustada numa das áreas mais vivas e carentes do centro de São Paulo, a instituição está ao lado da movimentada Estação da Luz, da cracolândia e de espaços urbanos que abrigam uma série de coletivos e movimentos sociais.

Ana Pato explica, no entanto, que diálogos com a população e os coletivos da região foram estabelecidos ao longo do processo de concepção da mostra, e assim seguirá sendo feito até o seu encerramento em março de 2022. A ideia de criar alguma espécie de museu de rua na região acabou sendo impedida pela pandemia de Covid-19, com a impossibilidade de gerar aglomerações. “Eu tinha sempre muita preocupação em não criar qualquer situação artificial dentro do espaço, como por exemplo construir um museu de rua dentro do memorial. Eu achava isso totalmente incoerente com a proposta do Yona, porque tudo que ele fala dessas estruturas móveis, do aproveitamento de material, das soluções dadas pelo próprio habitante e morador, são coisas que estão ali no centro de São Paulo”, diz Pato.

Entre o que foi possível fazer, os coletivos artísticos casadalapa e Paulestinos foram chamados para colaborar com a produção dos lambes da mostra e de uma bandeira que será fixada à frente da exposição – eles devem participar ainda de outras ações urbanas. “Eles se aproximam do pensamento do Yona neste diálogo entre comunicação e política, falando de reciprocidade nas trocas humanas”. Em parceria com o Sesc Bom Retiro será realizado na primeira semana de agosto o ciclo de encontros “A democracia é possível: experiências de resistência no território”. E, para ir além apenas do espaço expositivo, boa parte dos materiais apresentados, como os manuais e slideshows, estão disponíveis no site do Memorial, partindo de uma liberdade dada pelo autor, ainda em vida, para que seus trabalhos fossem divulgados, traduzidos e apropriados.   

A busca, portanto, é de que a exposição Democracia siga os passos propostos pelo próprio Friedman, mais uma vez naquele mesmo manual citado anteriormente: “Um museu não satisfaz o direito de compreender se se limita a apresentar uma única resposta às perguntas que foram feitas, nem se as respostas são dadas de forma hermética, nem, sobretudo, se as respostas dadas não tiverem relação com a vida cotidiana do público. (…) Ele deve provocar no público o desejo de compreender”.


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