Obra da série Desenhos da Liberdade de Ayrson Heraclito. Foto: Rafael Salim

Debret e Gê Viana são colocados lado a lado. As composições de 1948 de Joaquim Tenreiro tensionam com as obras de Moisés Patrício, Tiago Sant’Ana e Ayrson Heráclito que as avizinham. A cada quadro, buscamos nas paredes datas e nomes dos artistas e, por vezes, um sorriso se forma no canto da boca ao perceber a guerra de narrativas que se costura pela expografia. Foi essa reação que buscou Lilia Schwarcz ao traçar a curadoria de Vários 22, em cartaz na galeria Arte132, em São Paulo. Reunindo 80 trabalhos – entre obras do acervo da casa e de outras 10 galerias e artistas independentes -, a exposição convida a refletir sobre ideias enraizadas e a questionar o imaginário hegemônico e eurocêntrico que ainda permeia o Brasil. 

O título, Vários 22, enuncia um ano que não passa despercebido. Como aponta Lilia no catálogo da exposição: “Se misturam três datas que se contradizem entre si: a semana que projeta o futuro; o bicentenário, o passado; o falecimento de Lima, a morte simbólica de uma República que prometia inclusão, mas entregou exclusão social”. A curadora se refere, respectivamente, ao centenário da Semana de Arte Moderna, aos 200 anos da Independência do Brasil e à morte do escritor Lima Barreto – modernista não convidado à semana paulista que hoje comemoramos como símbolo nacional, homem negro que sofria com o racismo que ainda hoje permeia nossas relações. “Há, ainda, outro marco que inaugura 2022: os 10 anos da política de cotas no Brasil, que vem alterando a estrutura de nosso país, a despeito de os resultados serem insatisfatórios em termos de reparação e igualdade”, complementa Lilia.

As efemérides se encontram com as eleições e a Copa do Mundo, que ocorrem neste mesmo ano. Parecem, então, ter seus desdobramentos ainda mais presentes nas reflexões que se traçam entre passado e futuro, conquistas obtidas, ausências históricas e possibilidades no porvir. “É assim que eu entendo 2022, uma guerra de narrativas”, conta a curadora em entrevista à arte!brasileiros. Foi por esse caminho que ela desenhou Vários 22

Estabelendo diálogo

O convite para que Lilia curasse a exposição na Arte132 veio do fundador e diretor Telmo Porto. A ideia inicial era que se partisse do acervo da galeria – resultado da coleção construída pelo próprio Telmo nas últimas décadas -, no qual se encontra um amplo conjunto de esculturas, pinturas e desenhos dos séculos 19 e 20. “Disse ao Telmo que eu teria problemas de fazer uma exposição tão colonial”, conta Lilia. A pesquisadora sentia urgência em lançar um olhar contemporâneo sobre as obras. “Tenho refletido sobre esse ano de 2022, não se trata de derrubar monumentos só; se trata de contrastar, dialogar, fazer pensar o que existia lá, o que faltou, quais são as tensões ainda existentes, quais são as grandes contradições.” Assim, propôs algo diferente: colocar a coleção da Arte132 em diálogo com outros trabalhos e visões de mundo, convidando artistas e galerias a exporem conjuntamente no espaço. “Aí fomos montando esse quebra-cabeças, que era fazer com que obras coloniais ganhassem outro sentido a partir de uma visão mais contemporânea”, conta a curadora, que na escolha de artistas e obras buscou também a intersecção de vários marcadores – como raça, gênero, região, geração etc. 

Hoje, participam dessa conversa artistas sem galeria e obras de coleções particulares, com Daniel Lannes, Denilson Baniwa, Jaider Esbell e Jean-Baptiste Debret; e as galerias Casa Triângulo, Estação, HOA, Janaína Torres, Leme, Millan, Nara Roesler, Portas Vilaseca, Sé e Superfície. Em alguns casos, as obras expostas estão à venda; em outros, são apenas um empréstimo das galerias ou coleções, movidas exclusivamente pelo mote curatorial.

Nação é narrativa 

Talvez um ponto chave deste ano e da mostra seja a disputa narrativa na construção de uma ideia de Brasil. “A gente sabe que o conceito de nação é uma projeção imaginária. Para formar essa comunidade de cidadãos que se emocionam coletivamente existem alguns elementos fortes: a retratística, a paisagem e os emblemas pátrios”. E foi dessas divisões cânones da academia que Lilia partiu para pensar os três núcleos da exposição. “Gosto muito de mostrar como o presente está cheio de passado, sempre partir de temas clássicos da história da arte – história da arte essa que é um braço do imperialismo – e desmontar por dentro, desmontar a lógica dessas classificações, [mostrar] que nenhuma classificação é ingênua.” 

Também não é ingênua essa decisão na expografia. Ao optar por uma divisão em retratística, paisagens e emblemas nacionais, Lilia permite que vejamos lado a lado Aurélio Figueiredo, artista do final do século 19, David Almeida, artista contemporâneo legitimado pelo mercado das artes, e José Antonio da Silva, dito popular. “Por mais que para alguns pareça um desrespeito, uma falta de hierarquia; para mim, é um profundo respeito, porque você mostra os limites, mas também a atualidade dessa obra”, explica.  

E é nessa disposição – mesclando gerações, identidades, linguagens artísticas, e borrando as distinções entre ‘arte letrada’ e ‘arte popular’ – que os tensionamentos se tornam tão perceptíveis ao público. “Eu tenho pouca empatia pela hierarquia. Acho que a gente deve, de alguma maneira, se despir desses critérios evolutivos construídos pela história da arte, porque nós também não pensamos só evolutivamente”, compartilha Lilia. E completa: “Então eu quis promover esse tipo de diálogo. Porque é uma conversa. Se a gente fizesse uma coisa ‘evolutiva’, poderíamos desmerecer e desrespeitar também os artistas mais consagrados, os artistas modernistas. Acho que é ao contrário, damos atualidade a essas obras, não as deixando naquele lugar imaculado”.

Na sala principal, uma cena se trava entre as esculturas. Em cantos opostos da sala Índio com arco e flecha, de Ottone Zorlini, e O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui, de Flávio Cerqueira. Em um extremo, a obra traz a representação de um indígena imaginário e guerreiro, pintado por um homem branco ítalo-brasileiro nascido no final do século 19; no outro, um indígena de sandálias havaianas e estilingue no bolso, feito em 2016, “traz em seu corpo as contradições e os ruídos do processo de urbanização”, explica Lilia no catálogo. A escultura de Zorlini parece ter em sua mira a obra de Andrey Zignatto, Alicerce 1 (2020), que nos mostra uma cerâmica indígena amassada por um bloco de concreto – bloco este que o próprio artista define como uma alegoria da ‘civilização’. Na diagonal da obra, vemos um trabalho da série Bandeirantes de Jaime Lauriano, que nos traz uma miniatura de um desses personagens históricos, fundida em latão e cartucho de munição utilizada pela Polícia Militar e forças armadas brasileiras.

“Esse jogo do objeto escultórico para mim era muito importante, porque a escultura foi o lugar de projeção das elites políticas, econômicas e sociais”, destaca Lilia. É possível pensar algo semelhante em relação ao grande número de retratos de pessoas não brancas – pintados por artistas não brancos – que encontramos pela galeria. “O retrato nasceu para elevar, é uma extensão da historiografia europeia, né?”, então o que acontece quando trocamos os sujeitos retratados?

Porém, é preciso lembrar que essa disputa de narrativas no mundo das artes (e no Brasil como um todo) vai além dos quadros nas paredes e das esculturas em diálogo nas galerias e museus. As ausências históricas nos Brasis já narrados e as presenças nos Brasis possíveis – ambas destacadas em Vários 22– por vezes se percebem também nos públicos das mostras e ecoam após a saída desta e de outras exposições.

SERVIÇO

VÁRIOS 22
ONDE: Arte132 | Av. Juriti, 132, Moema, São Paulo
QUANDO: 19 de março a 21 de maio
VISITAÇÃO: segunda a sexta, das 14h às 19h; sábados, das 11h às 17h. Entrada gratuita 

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