José Cláudio, "Viva Zé Pereira", 1971
José Cláudio, "Viva Zé Pereira", 1971. Foto: Flavio Freire / Cortesia Galeria Nara Roesler

Olhando pelo retrovisor, o repertório artístico de José Claudio da Silva impõe-se pelas conquistas obtidas ao longo de mais de sete décadas. Aos 90 anos, o artista expõe cerca de 150 obras entre pinturas, desenhos, carimbos, que ocupam toda a Galeria Nara Roesler, em São Paulo. A extensa mostra, realizada com releituras tenazes e encontros disciplinados, consegue o feito de reunir três amigos de longa data, e tudo começa quando a crítica e historiadora de arte Aracy Amaral passa o réveillon no Recife e vai à casa do artista, como faz sempre que está na cidade. “Gosto de estar com José Claudio, ouvir suas histórias de vida”, diz. Ao voltar a São Paulo, ela recebe o convite de Nara Roesler para assumir a curadoria.

Um prodígio de energia e método, Aracy, com idade próxima à de José Claudio, arregaça as mangas e sai a campo. Garimpa obras em museus, coleções particulares, galerias, dentro do um arco temporal entre os anos de 1950 e 1990. Curar uma exposição faz do crítico intermediário transformado em autor, pelo processo de seleção das obras e analogia entre elas. A lógica de Aracy é a lógica do saber acumulado. Sem tropeços, encontra achados como a expressiva série Aventura da Linha (1955), trabalhada com nanquim sobre papel, pertencente ao acervo do MAM SP; Simetria (1982), dança erótica/sensual desenvolvida no solo, com toques matisseanos, e a releitura de obras de Almeida Júnior, entre tantas outras.

O percurso de José Claudio é feito pela paixão por seu território, a mesma paixão do “homem situado” nomeado por Gilberto Freyre, isso exemplifica sua participação no Ateliê Coletivo, dirigido por Abelardo da Hora, e que levava em conta a luta do povo oprimido, destacando as atividades rurais e urbanas a partir do cotidiano do trabalhador. Ele sabia que estava pisando em campo minado por conhecer a famosa frase do modernismo Pernambuco: “regional como opção, regional como prisão”. 

A obra do muralista mexicano Rivera também era inspiração para o grupo que já começa a fazer arte pública. Para Aracy, José Claudio nasce para a pintura no Ateliê Coletivo, quando era um jovem e entusiasta da atmosfera artística do local. Como o artista já repetiu em várias entrevistas, ele considera o Ateliê como divisor de águas na história da pintura pernambucana. 

Motivado por um impulso renovador, José Claudio estava ansioso pela vida de artista e, ao fixar-se em Salvador, de 1953 a 1954, e conhecer Mario Cravo Júnior, Jenner Augusto, Carybé e suas obras, ele muda sua vida. Espírito inquieto, o artista segue depois para São Paulo onde trabalha como assistente de Di Cavalcanti e frequenta a Escola de Artesanato do MAM SP, sob orientação de Lívio Abramo. 

A relação de José Cláudio com a capital paulista vem de longe. Aracy destaca o período em que ele colabora com o Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo, sob a orientação de Arnaldo Pedroso D’Horta. A obra do jovem José Claudio, naquele momento, encontra-se ao mesmo tempo na fronteira de alguns movimentos de arte que ele não ignora e na técnica desenvolvida por ele com gestos originais. 

Nessa época desponta o desenhista delicado, atento à linha do nanquim que, segundo Aracy, surpreende na disciplina assumida em sua múltipla observação de exposições e bienais. Nos trabalhos transparece certa influência da obra de Lívio Abramo, Grassmann, ou da abstração linear, quase abstrata, de Pedroso d’Horta. 

Por insistência de amigos, o artista inscreve-se e é aceito na Bienal de São Paulo, em 1957, recebe o Prêmio de Aquisição, além da bolsa da Fundação Rotellini, na Itália, onde vive por um ano e viaja a vários países. Essa foi a primeira de uma sequência de participações dele no evento paulista, em que esteve na 5ª, 6ª, 7ª e 18ª edições.

José Cláudio, sem título, 1968; nanquim sobre papel a partir de carimbos
José Cláudio, sem título, 1968; nanquim sobre papel a partir de carimbos. Foto: Flavio Freire / Cortesia Galeria Nara Roesler

Nos anos 1960, entre várias experimentações poéticas, nasce a série de carimbos em nanquim sobre papel. “Essas composições abstratas com diversidade rica de pura poesia gráfica perduram de 1968 a 1969”, comenta Aracy. No livro Carimbos – José Cláudio está citada a correspondência entre o artista e Walter Zanini sobre os conceitos dessa experiência e o elogio do crítico paulista ao seu trabalho. 

Na virada dos anos 1970, José Claudio faz a série Histórias de um Carimbo e desenvolve um “livro de artista” instigante, no qual mistura seu processo de trabalho, carimbos, desenhos, recortes de revistas, pinturas, colagens e textos. Uma obra que incomoda por criar um pacto com o leitor, suprimindo interlocutores.

Prosseguindo no feito de chegar a uma obra múltipla e singular, em 1975 José Claudio aceita o convite do amigo cientista e compositor musical Paulo Vanzolini, diretor do Museu de Zoologia da USP, para fazer uma viagem de Manaus a Porto Velho, a bordo do Garbe, um barco-laboratório. Para essa empreitada, mais uma vez tem o apoio de Renato Magalhães Gouveia, galerista e amigo de sempre, que lhe dá um rolo com dezenas de metros de tela. 

Essa expedição resultou numa coleta de 170 mil espécies para a coleção do museu paulista e, para as artes, cerca de 100 telas inspiradas na vegetação, fauna, nos personagens ribeirinhas e tudo o mais que ele conseguiu captar em cada dia de viagem, inclusive os pratos com peixes que experimentaram. José Claudio foi incumbido por Vanzolini de escrever um diário que resultou em relatório detalhado, transformado no livro José Claudio da Silva – 100 Telas, 60 Dias & um Diário de Viagem: Amazonas (1975).

Quando retorna ao Recife, seu trabalho se inunda de cores e luz do sol que banha a cidade, com algumas telas exibindo flagrantes do carnaval. Nesse momento de liberdade tonal surge a obra Zé Pereira, alusão ao bloco que arrasta os foliões pelas ruas da cidade, com seu enorme boneco que completa 100 anos. 

Nu é um gênero de pintura que nasce na academia. José Claudio faz uma série com mulheres desnudas que conheceu em bordeis da cidade. Aracy diz que o objetivo dessas visitas era pintar as personagens que ali trabalhavam, e cada um desses quadros leva o nome da moça retratada. Ainda desse período, ele homenageia a esposa com a pintura Retrato de Leonice (1971), e oito anos depois eterniza sua amiga galerista na tela Nara (1979). 

Nos anos 1980, José Claudio mergulha no universo de Almeida Júnior, faz releitura dos quadros O importuno (1898), Descanso da modelo (1882) e Saudade (1899), em que retrata uma moça vestida de preto lendo uma carta. Na versão de Zé Claudio, a mulher está nua igualmente lendo a carta. Nessas obras, o artista pernambucano praticamente elimina a profundidade do plano pictórico e simplifica as formas com tendência geométrica.

Tantas curiosidades permeiam essa exposição motivada pelo respeito que Nara Roesler tem pelo artista. “Devo meu trabalho como galerista a José Cláudio. Sua obra me tocou profundamente e despertou em mim o desejo de ser como uma tradutora do artista”, afirma Nara.

Com ele, a galerista diz ter aprendido a olhar as coisas simples do cotidiano popular. Ver a beleza das roupas coloridas que as lavadeiras colocavam para secar nas margens dos riachos, os raios de sol entre as folhas e a dança dos coqueirais. O sabor da manga madura e o cheiro do caju, os céus do entardecer em Olinda e toda a beleza contida na vida. “Assim, essa exposição é uma homenagem aos 90 anos de meu mestre, esse talentoso artista que tanto me ensinou”, finaliza Nara.


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