*Por Maria Hirszman e Marcos Grinspum Ferraz
Além da tradicional exaltação que costuma marcar as celebrações de grandes datas, a movimentação em torno do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922 – que promete agitar o calendário do ano que vem – parece estimular a ampliação e aprofundamento dos estudos e investigações acerca da modernidade no Brasil. Ao menos é o que indicam as várias exposições abertas recentemente em diferentes museus, como a Pinacoteca do Estado, o Museu de Arte Moderna (MAM-SP) e o Museu de Arte Contemporânea (MAC USP). Para além de suas características particulares, as mostras realizadas por essas três instituições compõem em seu conjunto um interessante painel, que reafirma em seu conjunto questões, muitas vezes mantidas em segundo plano: o papel das artes decorativas na constituição desse pensamento moderno; a importância fundamental de artistas menos consagrados, mas não por isso menos relevantes, como John Graz e os irmãos Gomide; a necessidade de se atentar para informações preciosas presentes em materiais menos valorizados, como desenhos, estudos e correspondências, com presença significativa e crescente nas coleções museológicas.
“Nosso interesse é justamente olhar para outras matrizes e configurações da modernidade e do moderno que a historiografia até hoje não deu tanta atenção. Não se debruçou como deveria”, afirma Fernanda Pitta, curadora da mostra John Graz: idílio tropical e moderno, em cartaz na Estação Pinacoteca. “Muito já se disse a respeito de artistas como Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral, Anita Malfatti e Lasar Segall – que se consagraram com uma repercussão até internacional -, enquanto John Graz, Regina Gomide Graz e Antonio Gomide ficaram meio escanteados. Porque demorou muito para se entender que eles trabalharam com um ramo da arte que é extremamente importante para a própria modernidade, que tem a ver com o modo de morar e o modo de viver”, complementa Maria Alice Milliet, responsável pela exposição Desafios da modernidade – Família Gomide-Graz nas décadas de 1920 e 1930, em cartaz até agosto passado no MAM-SP.
Movimento semelhante, de investigação mais profunda das motivações e produções desenvolvidas por distintos autores nesses anos chave do modernismo no país, norteia a investigação levada à cabo na mostra Projetos para um Cotidiano Moderno no Brasil: 1920-1960, que pode ser vista até julho de 2022 no MAC. Fruto de um projeto desenvolvido no âmbito do projeto de pesquisa CNPq Narrativas da Arte do Século 20, a exposição reúne uma seleção de obras pertencentes à coleção do museu. E que mereciam um olhar mais sistematizado. Aliás, a presença importante desse modernismo ampliado na coleção do museu deve-se à ação ativa de Walter Zanini. “Todo mundo fala do Zanini como um historiador da arte, que se dedicou a essa chave nova de pesquisar as novas práticas contemporâneas, as práticas processuais dos anos 1960 e 1970, mas ele teve um papel muito importante no resgate de determinados nomes do modernismo brasileiro”, lembra Ana Magalhães, diretora do MAC e coordenadora da equipe de curadoria da mostra.
“O que importa é justamente essa visão mais ampla, de um projeto que não se preocupa apenas com formas modernistas, com a arte com A maiúsculo, mas que envolvia o engajamento desses artistas com várias outras frentes, como ilustradores, artistas gráficos, decoradores, designers, arquitetos e cenógrafos”, explica Ana. “Ou seja, isso também faz parte, é um valor para esse projeto modernista, que essas coisas sejam da convivência do dia a dia das pessoas”, complementa, apontando que a exposição contempla de cardápios e leques para bailes de carnaval desenhados por Gomide a desenhos de Flávio de Carvalho para o balé A Cangaceira.
Alguns dos destaques da seleção atualmente à mostra, como o conjunto para sala de estar projetado por Graz (que também esteve presente na exposição do MAM) é um motivo de celebração à parte para o museu, pois representa uma das mais importantes doações recentes recebidas pelo MAC: a da Coleção Fulvia e Adolpho Leirner de Art Déco no Brasil. “Do ponto de vista da história institucional do MAC não tenho a menor dúvida, essa é – depois da coleção que o Ciccillo constituiu para a criação do MAM-SP, que foi transferido para o MAC, e talvez a doação Theon Spanudis – a mais importante doação que o museu recebeu nos últimos tempos. Até porque é mais difícil para o museu hoje encontrar colecionadores que se disponham a doar obras dessa qualidade e dessa importância”, afirma a curadora.
“Universidades são instituições duráveis. Esse acervo será estudado, conservado e divulgado em um ambiente acadêmico. Além do mais, normalmente a universidade não tem verba para compra de obras raras e únicas”, afirma Adolpho Leirner ao explicar a razão dele e Fulvia terem decidido legar as obras ao museu. Segundo ele, a realização da mostra Projetos para um Cotidiano Moderno já sinaliza esse interesse. Além dos móveis de Graz e do conjunto de mobiliário da Casa Modernista de Gregori Warchavchik, uma série de outras preciosidades dessa coleção, garimpadas ao longo de décadas, vem se somar à coleção do museu. Dentre elas é possível citar a escultura Índia, de Cássio M´Boi, um relevo em gesso de Antelo Del Debbio (encontrado por acaso pelo casal numa casa de demolições na Av. Rebouças), duas cadeiras de Flávio de Carvalho e o estudo para cartaz da exposição de Tarsila do Amaral em Moscou. A doação inclui também o arquivo com dados de todo esse material, que constitui importante material de pesquisa e que serviu de base para o livro Art Déco no Brasil – Coleção Fulvia e Adolpho Leirner, lançado ano passado pela Editora Olhares.
Essa maior abertura ao estudo e exposição do design e das artes aplicadas é celebrada por Leirner, que sublinha a importância – inclusive histórica – da coleção que montou no último meio século. O panneau Mulher com Galgo de Regina Gomide Graz estava, por exemplo, na exposição organizada por Pietro Maria Bardi em 1972 para celebrar os 50 anos da Semana de Arte Moderna e agora volta a integrar um evento em torno do centenário do evento. Aliás, foi das mãos de Bardi que o casal adquiriu a peça.
Um artista completo
Diferentemente da mostra do MAC, que reúne trabalhos de um número maior de artistas, as exposições John Graz: idílio tropical e moderno, até janeiro na Estação Pinacoteca, e Desafios da modernidade – Família Gomide-Graz nas décadas de 1920 e 1930 (que esteve em cartaz no MAM) se dedicam mais especificamente ao núcleo artístico formado pelos irmãos Gomide e por John Graz, com destaque especial para este último. Vale ressaltar que os três estão presentes também na ampla mostra Moderno onde? Moderno quando? A Semana de 22 como motivação, com curadoria de Aracy Amaral e Regina Teixeira de Barros, em cartaz no MAM.
Nascido na Suíça em 1891, Graz estudou na Escola de Belas Artes de Genebra, onde conheceu os brasileiros Regina e Antonio Gomide. Para além de frequentar um curso que abrangia desenho, decoração e arquitetura, Graz logo passou a fazer também cartazes publicitários e vitrais, aperfeiçoando suas técnicas em um período na cidade de Munique, na Alemanha, e em viagens à França e Espanha. Segundo Maria Alice Milliet, o artista teve, portanto, “uma formação muito completa”, baseada numa ideia de “arte total”. “E impressiona, ao longo de sua vida, a qualidade com que faz isso tudo: a pintura, o desenho, ou o projeto do chão, do teto, da parede, até o objeto, a pia, as fechaduras, móveis, o tapete, a luminária, os painéis em gesso, vitrais… nada escapava ao desenho do Graz. É uma concepção total do espaço.”
Pouco depois de chegar ao Brasil, em 1920, onde se casa com Regina e se estabelece até o fim da vida, Graz expõe no Salão do Cinema Central em São Paulo. Conta-se que ali Oswald de Andrade se encantou por seu trabalho e comprou uma de suas telas, oferecendo para a transação um terreno em Pinheiros – onde posteriormente Graz construiria sua casa. Foi também Oswald que o convidou, dois anos depois, para participar da Semana de Arte Moderna, onde Graz viria a apresentar sete telas. Apesar de se aproximar do movimento dos artistas modernistas neste período – ele colabora, ainda, com a célebre revista Klaxon -, Graz rapidamente passou a se dedicar mais às artes aplicadas e à arquitetura de interiores.
Se bebeu no ideário racionalista da Bauhaus, foi especialmente na explosão internacional do Art Déco – que permitia ornamentações e decorações rejeitadas pela escola alemã – que Graz se inspirou. É considerado, portanto, um dos principais nomes a trazer o estilo europeu para o Brasil, notadamente após visitar ao lado de Regina, em Paris, a Exposição internacional de artes decorativas e industriais modernas, em 1925. De sua dedicação a este universo resultou a abertura da loja John Graz Decorações, em 1930, com a qual decorou casas projetadas por célebres arquitetos modernos como Warchavchik e Rino Levi. Mas é desta atuação, também, que decorre certa rejeição ao seu nome – e dos irmãos Gomide – no panteão dos grandes artistas modernistas do país.
“Houve uma incompreensão da própria classe artística. O John Graz cria ambientes absolutamente modernos, mas isso cai na categoria ‘decoração’, não é arte. Eles não entenderam a importância que teria essa união entre a criação intelectual e a indústria, a produção de objetos para uso cotidiano. Ainda estavam muito ligados aos gêneros tradicionais da arte: a pintura, a escultura, a gravura, o desenho”, afirma Milliet. Fernanda Pitta segue a mesma linha: “Tanto naquele momento quanto na historiografia que vem posteriormente há uma tendência de diminuir o aspecto experimental e transformador do Art Déco, sem perceber o caráter de ruptura e de experimentação que essa escola apresentava naquele contexto histórico”.
O fato de olhar para as matrizes europeias do Art Déco e da Bauhaus não impediram Graz de adentrar o universo cultural brasileiro, pelo qual logo se encantou, por mais que sua visão seja considerada por vezes idealizada ou idílica. Se a exposição dos Gomide-Graz no Mam-SP deu maior destaque à essa produção decorativa dos três artistas, a mostra na Pinacoteca, que inclui 42 obras recém-doadas pelo Instituto John Graz ao museu, põe em evidência uma série de desenhos e pinturas onde Graz retrata indígenas, afrodescendentes e aspectos da cultura popular brasileira – festas de Carnaval ou do Bumba meu boi, pescadores em jangadas ou baianas carregando frutas.
“É preciso entender que faz parte de um processo mais amplo que dialoga com o que outros artistas modernos também fizeram, de apropriação e de uma relação distante, às vezes romantizada, com culturas afrodescendentes e indígenas do Brasil”, diz Pitta, sobre este aparente paradoxo. “Não é uma limitação somente do Graz. E temos que reconhecer que nesse processo de valorização há também uma apropriação e uma apagamento desses agentes.”
Com exposições, análises críticas e até mesmo o redescobrimento de obras perdidas de Graz e dos irmãos Gomide, o que se celebra é a ampliação de um debate que já poderia ter sido feito e que “refina e complexifica”, nas palavras Pitta, o entendimento sobre a arte moderna no Brasil. Até porque, como afirma Milliet, “São Paulo é uma cidade que não guarda memória, é uma cidade voraz. Então muito daquilo que estava dentro das casas, quando passou a moda do Art Déco, foi descartado pelas famílias. Além do que muitas dessas casas foram demolidas, e nelas haviam painéis em gesso, pinturas e vitrais do Graz. Até por isso essa atuação do Adolpho e da Fulvia Leirner é tão importante, de resgatar isso. E com esse reconhecimento, muitas coisas tem aparecido, por vezes de pessoas que relembram de obras e mobiliário que eram de seus avós e estavam perdidos por aí”.