Retratos de Benta Maria, Antonio Dutra e Manuel do Sacramento por Igi Ayedun. Foto: Cortesia Companhia das Letras e Pinacoteca de São Paulo
Retratos de Benta Maria, Antonio Dutra e Manuel do Sacramento por Igi Ayedun. Foto: Cortesia Companhia das Letras e Pinacoteca de São Paulo

*Por Tiago Gualberto

Muitos irão se lembrar das enciclopédias compostas por dezenas de volumes e muitos quilos dispostas elegantemente no ponto mais alto da estante da sala. Além de um investimento na educação dos filhos, a coleção de livros muitas vezes era interpretada como um sinal de boa condição financeira e apreço pelo conhecimento. Um objeto que deveria ser transmitido de geração em geração e consultado por toda a família e, até mesmo, por vizinhos e colegas de escola. As impressões em letras douradas em largas lombadas reforçavam a sua importância e a de seus conteúdos. Uma fonte de informação e conhecimento tomada por inquestionável e garantia de boas notas.

Parte das novas gerações habituadas ao sistema de busca do Google e tantas outras plataformas online disponíveis na internet talvez desconheça o papel que as enciclopédias e sua tradição iluminista ocupou em nossa maneira de interpretar o mundo e o conhecimento. Ao reunir intelectuais e pensadores em torno dos mais variados campos como da filosofia, artes, economia, ciências, política, entre outros, o movimento iluminista francês almejou desafiar os obstáculos à liberdade de pensamento e expressão a partir do século 18. Assim, construiu-se uma das mais eficientes ferramentas ocidentais de compartilhamento do conhecimento acumulado e de formulação de uma organização social guiada pelo farol, pela luz da razão. 

Contudo, não precisaremos de fartos exemplos para reconhecer as fragilidades e abusos cometidos em nome deste projeto de acesso ao saber universal por meio da “iluminação” ao longo dos últimos séculos. Por agora, basta lembrarmos as centenas de figuras que ilustravam quaisquer enciclopédias de capas luxuosas, por vezes vendidas de porta em porta. Centenas de homens brancos, europeus e americanos e seus grandes feitos para a “humanidade”. Há poucas décadas, copiar os conteúdos dessas enciclopédias e suas histórias incontestáveis fazia parte de uma agenda escolar baseada na reprodução em detrimento do aprendizado.

Neste contexto, anterior ao mercado das vendas online, as livrarias constituíam espaços de intimidação para uma ampla faixa da população brasileira que se via incluída historicamente em suas prateleiras apenas como objetos de pesquisa. Uma das razões do sucesso dos antigos vendedores de enciclopédia.

Capa de “Enciclopédia Negra”. Foto: Divulgação

O livro Enciclopédia Negra, de autoria do historiador Flávio dos Santos Gomes, do artista visual Jaime Lauriano e da antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, publicado em março de 2021 pela Companhia das Letras, apresenta-se como uma alternativa de enfrentamento do racismo estrutural presente em materiais de referência de grande alcance. Trata-se de um levantamento sobre a contribuição e história de importantes personalidades negras no Brasil ao longo dos últimos 400 anos, privilegiando o amplo período da escravidão e pós-abolição. A partir de uma investigação coletiva, marcada pela colaboração de diferentes pesquisadores e especialistas, a publicação reúne 416 verbetes biográficos, individuais e coletivos, a partir da experiência afro-atlântica de cerca de 550 personagens já falecidos. Para os autores, “se o critério para constar neste livro foi a morte, o objetivo é a vida.”

No entanto, estes números não devem ser considerados como representativos da abrangência e diversidade dessas histórias presentes em Enciclopédia Negra. Ao contrário, o livro recusa o uso de estatísticas em prol da afirmação das singularidades desses personagens, destacando o protagonismo através da nomeação, do reconhecimento de feitos, da atualização do valor social e da complexidade da vida desses atores face às condições do nosso passado e presente brasileiro. O resultado é uma narrativa organizada, não exaustiva, capaz de circular por todas as regiões do país, afirmando uma atenção à memória de mulheres e pessoas LGBTQI+ raramente presentes em publicações dedicadas a celebrar contribuições na formação de nossa sociedade.

Neste sentido, além de confrontar a historiografia colonial responsável por negar visibilidade às contribuições de pessoas negras, o livro desempenha um importante papel na reapresentação, organização e divulgação de informações usualmente mantidas em centros de pesquisa, bibliotecas e núcleos especializados. Trata-se da oferta destes saberes para além do espectro universitário. Pesquisadores, professores, alunos de diversas idades encontrarão na Enciclopédia Negra um material de fácil acesso e manuseio, além de indicações de referenciais de pesquisa integrados aos verbetes.

Para isso, os autores nutrem-se dos frutos dos movimentos sociais e do pioneirismo das conquistas intelectuais de diferentes gerações de historiadores, cientistas sociais, artistas e pesquisadores negros e negras. Entre as inúmeras publicações antecessoras utilizadas como referência para Enciclopédia Negra, destacam-se Fala, crioulo: depoimentos (1982), de Haroldo Costa, no qual temos acesso a entrevistas de nomes como Pelé e do ator Milton Gonçalves, mas também a personagens anônimos, donas de casa, garis e cabeleireiros, compartilhando as suas trajetórias e perspectivas sobre o racismo brasileiro. Em outro significativo exemplo, A mão afro-brasileira (1988), livro organizado pelo artista plástico e diretor do Museu Afro Brasil Emanoel Araujo, encontramos o protagonismo negro nas artes visuais, na dança, música, poesia e literatura de várias gerações. Entre tantos outros títulos, Quem é quem na negritude brasileira (1998), do professor e poeta Eduardo de Oliveira, e o Dicionário da Escravidão Negra no Brasil (2004), organizado por Clóvis Moura e Soraya Silva Moura, formam, ao lado das pesquisas e publicações de Nei Lopes, Oswaldo de Camargo, Conceição Evaristo, Fernanda Miranda, Lélia Gonzalez, caminhos para se compreender as contribuições desenvolvidas a partir da África e sua diáspora, dos impactos do colonialismo e da impossibilidade de se compreender o mundo sem estes conhecimentos.

Portanto, Enciclopédia Negra, em diálogo com estas conquistas intelectuais, não se restringe às abordagens que associam a participação negra na história brasileira aos ciclos econômicos do açúcar, da mineração e do café durante o período da escravidão. Tampouco privilegia as narrativas preconceituosas que reduzem as insurreições negras a simples rebeldia. Somadas à própria experiência dos autores frente aos estudos a respeito da escravidão, pós-abolição e reconstrução de perfis, trajetórias e biografias negras, o livro apresenta sensibilidade na compilação dessa multiplicidade de referências observadas aqui e que, em grande parte, em outras publicações sobre o tema, não são observadas senão em meio a censuras, desatenção e negligências. Esta situação pode, infelizmente, ser observada na restrita seleção de autores presentes nos catálogos de grandes editoras dedicadas apenas a responder às demandas de materiais após a promulgação da lei 10.639, de 2003, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas.

Assim, os verbetes sobre personagens singulares e coletivos que descrevem tanto experiências individualizadas quanto comunitárias apresentam-se como portas de entrada para diferentes filosofias, religiosidades, práticas corporais, tecnologias, ativismos, mobilizações e empreendedorismos. Também buscam descrever as batalhas diárias e o cotidiano de cada período, assim como suas limitações, suas complexidades e suas contradições. Logo, Chica da Silva, Madame Satã, Abdias do Nascimento, Anastácia, Geraldo Filme e Heitor dos Prazeres compartilham narrativas ao lado de Claudia Ferreira, Robson Cruz, Rosalina, Francisca Luiz e tantos outros ilustres desconhecidos.

A exposição

Neste empenho em alterar a imaginação dos brasileiros quanto ao tema, a realização do projeto Enciclopédia Negra inclui a montagem da exposição de mesmo título no museu Pinacoteca do Estado de São Paulo. A exposição Enciclopédia Negra, aberta ao público a partir do dia 1º de maio de 2021, apresenta 103 trabalhos de 36 artistas contemporâneos. Entre as três salas de exibição, o visitante observa em sua maioria trabalhos bidimensionais, de pequeno e médio formato, entre pinturas, desenhos, aquarelas e objetos de autoria dos artistas Amilton Santos, Antonio Obá, Andressa Monique, Arjan Martins, Ayrson Heráclito, Bruno Baptistelli, Castiel Vitorino, Dalton Paula, Daniel Lima, Desali, Elian Almeida, Hariel Revignet, Heloisa Hariadne, Igi Ayedun, Jackeline Romio, Jaime Lauriano, Juliana dos Santos, Kerolayne Kemblim, Kika Carvalho, Lidia Lisboa, Marcelo D’Salete, Mariana Rodrigues, Micaela Cyrino,Michel Cena, Moisés Patricio, Mônica Ventura, Mulambö, Nadia Taquary, Nathalia Ferreira, Oga Mendonça, Panmela Castro, Rebeca Carapiá, Renata Felinto, Rodrigo Bueno, Sonia Gomes e Tiago Sant’Ana.

Embora todos os trabalhos comissionados não constem na publicação, pois apenas uma obra de autoria de cada um dos 36 artistas está presente no caderno de imagens da Enciclopédia Negra, o conjunto se impõe como um retrato coletivo das variadas proposições e tentativas de compor uma presença institucional do negro nas artes. Para tanto, a doação desses trabalhos, em sua grande maioria retratos figurativos das personagens biografadas, constitui uma intervenção em busca de representatividade.

Logo, ao recuperar vidas marcadas pela morte, o livro Enciclopédia Negra almeja extrapolar a visão do negro como sinônimo de escravizado, subalterno, onde o racismo se constitui como mecanismo de recusa de sua humanidade e legitimação de sua exploração e de seu extermínio, tanto físico, político e simbólico. O filósofo e professor Achille Mbembe nos informa que o reconhecimento e a reparação dessa violência se dá à medida em que desconstruirmos o pensamento colonial e passemos a identificar o negro em sua dimensão universal, humana e múltipla, longe de uma dimensão categórica, responsável pelo jugo que mantém corpos negros como mercadorias. Por isso é preciso dizer: Vidas Negras Importam! 

 


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