Exposição de Niki de Saint Phalle. Foto: Leo Lara/Studio Cerri

Visionária, explosiva e revolucionária, Niki de Saint Phalle (1930–2002) virou do avesso a arte do século XX. Suas obras marcadas por explosões de cor e gesto desafiaram preconceitos, romperam silêncios e abriram caminhos para que a liberdade feminina pudesse ser celebrada sem pedir licença. Com esta força que chega ao Brasil a exposição Niki de Saint Phalle. Sonhos de Liberdade, na Casa Fiat de Cultura, em Belo Horizonte.

Inédita no país, a mostra reúne 67 obras da artista franco-americana, quase todas nunca foram vistas por aqui, entre esculturas, assemblages e as icônicas Nanas (figuras femininas deliberadamente exageradas), vindas em sua maioria do acervo do Museu de Arte Moderna e Arte Contemporânea de Nice (MAMAC), além de uma obra rara da Pinacoteca de São Paulo, que sai do museu pela primeira vez desde 1997, quando foi adquirida. 

Pouco antes de sua morte, em 2001, Saint Phalle doou um conjunto extraordinário de obras ao MAMAC, cuidadosamente selecionadas por ela. Segundo os curadores da exposição no Brasil, Hélène Guenin e Olivier Bergesi, “o acervo reflete não apenas seu lugar essencial na história da arte das últimas seis décadas, mas também suas convicções, sua fúria, suas batalhas e a maneira como ela se posicionou em sua época”.

A partir de uma rede de parcerias internacionais — entre a Prefeitura de Nice, o MAMAC, a Niki Charitable Art Foundation e o grupo 24 Ore Cultura, de Milão — foi que nasceu a ideia da Sonhos de liberdade, unindo forças e visibilizando a potência transformadora de uma artista que nunca se acomodou. 

Em Niki de Saint Phalle. Sonhos de Liberdade, o público é convidado a percorrer diferentes momentos da vida e da obra da artista, desde seus primeiros experimentos artísticos até suas esculturas de grande porte, passando por fases marcadas pela dor, experimentação, cura, celebração e engajamento social. A mostra combina obras históricas, registros audiovisuais e ambientações, que dialogam com a vibrante linguagem visual da artista. A mostra acontece até dia 2 de novembro e integra a programação da Temporada França-Brasil 2025. 

Roubando o fogo

Niki de Saint Phalle não aceitava ser mera espectadora da vida — preferiu explodir, detonar, atirar contra ela. Feminista quando ainda era perigoso, ela ousou ocupar espaços dominados por homens e deu corpo a um imaginário exuberante, povoado por deusas gigantes, monstros coloridos e criaturas que riam da moral burguesa. Sua fúria se converteu em forma, a batalha incessante contra as convenções do patriarcado revolucionou o mundo da arte.

“Compreendi muito cedo que os homens detinham o poder, e eu queria esse poder. Sim, eu lhes roubaria o fogo. Não aceitaria os limites que minha mãe tentava impor à minha vida só porque eu era mulher. Ultrapassaria esses limites para alcançar o mundo dos homens, que me parecia aventureiro, misterioso e excitante. Decidi que eu mesma me tornaria uma heroína”, escreveu Saint Phalle em carta ao colecionador Pontus Hultèn, em outubro de 1991.

Durante muito tempo, Niki de Saint Phalle foi mal compreendida e até reduzida a caricaturas de si mesma: as Nanas exuberantes, as declarações inflamadas, o gosto assumido pelo ornamento. Parte da crítica masculina descartava sua produção como “feminina demais” e desqualificava seu discurso sobre o matriarcado. Ao mesmo tempo, algumas historiadoras feministas da arte também viam em suas criações uma armadilha — a suspeita de que, ao lidar com corpos fartos e coloridos, ela pudesse estar reforçando estereótipos que queria combater.

Presentemente, a sua  obra tem passado por uma releitura necessária em diversas partes do mundo. “Hoje, sua produção é finalmente reconsiderada em toda a sua riqueza e complexidade; reconhecida por sua contribuição única e incontestável à história das formas e dos gestos; e reavaliada à luz de seu engajamento profundo e de sua sensibilidade frente aos conflitos e causas de seu tempo”, declaram os curadores.

O caminho de uma heroína

Em 1953, Saint Phalle começou a fazer colagens com gravetos e pedrinhas, após ser hospitalizada por problemas de saúde mental, causados pelo estereótipo sexista do pós-guerra. A família havia chegado de volta à França, fugindo do clima repressivo dos Estados Unidos.

Depois, passou a fazer pinturas com mundos imaginários, uma mescla de fantasias e inquietações — e quando percebeu, a prática artística seria sua própria cura. “No fim das contas, minha depressão nervosa acabou sendo algo bom, porque minha estadia na clínica fez de mim uma pintora”, declarou ela em seu livro Harry and Me, 1950-1960: The Familiy Years.

Nos anos seguintes viria a criar as assemblages, uma espécie de colagens em que combinava pequenos brinquedos com materiais descartados e utensílios domésticos. Em um segundo momento passou a incorporar objetos mais agressivos e perigosos, como lâminas, tesouras, armas de brinquedo e objetos pontiagudos. Os primeiros indícios de uma expressão artística marcada pela revolta.

Pintora, escultora, cineasta, ela transformou traumas em munição e, com balas de rifle calibre .22, atirava contra suas próprias telas para ver nascer dali outra expressão de arte insubmissa. Assim, ainda em 1961, surgiram os Tirs (pinturas-tiro), que revolucionaram por completo o mundo da arte. Tiros que refletiam o mundo dilacerado pela violência num contexto de Guerra Fria. Obras complexas e repletas de significados que expressavam a fúria da artista contra o patriarcado e suas instituições.

“Nunca experimentei uma criatividade tão intensa quanto a que vivi com os Tiros. Foi emocionante ver aquelas obras se tornarem algo real diante dos meus olhos; meus sentimentos de agressividade encontraram uma forma de sublimação”, declarou a artista.

A partir de 1963, surgem as Nanas — figuras femininas deliberadamente exageradas, que transformam em escultura a ironia dos estereótipos. Entre noivas, feiticeiras, mães devoradoras ou mulheres em pleno parto, Saint Phalle expôs com ironia os papéis que a sociedade insistia em impor ao feminino. 

Para ela, as Nanas representam as mulheres no poder. “Temos o Black Power, então por que não o Nana Power? O comunismo e o capitalismo fracassaram. Acho que chegou o momento de uma nova sociedade matriarcal”, declarou ao Huston Post.

Já no final dos anos 1970, Saint Phalle começou elaborar o que, vinte anos depois, se tornaria o Jardim dos Tarôs, um projeto público faraônico localizado na Toscana, Itália.

Sua produção potente e imaginativa continua a inspirar novas gerações, não apenas por sua estética ousada, mas pela capacidade de transformar sofrimento em beleza, denúncia em esperança, exclusão em potência. Suas obras são um hino à liberdade, à alegria e à diversidade, e, por isso, seguem tão atuais.


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